sexta-feira, 27 de setembro de 2013
GOLPE NO CHILE - 40 ANOS
Por Clóvis Rossi
Ainda havia filetes de sangue nas águas rasas do Mapocho, o riozinho que corta Santiago, quando cheguei ao Chile para cobrir o golpe que derrubou o presidente constitucional Salvador Allende Gossens.
Era 21 de setembro de 1973, porque, nos dez dias desde que foi dado o golpe, o Chile ficara fechado por terra, mar e ar para que os militares pudessem provocar o derramamento de sangue que manchou o Mapocho e espalhou-se por todo o Chile, "desde el salar, ardiente y mineral/al bosque austral", como diz a canção "El pueblo unido jamás será vencido" que o grupo folclórico Quilapayún cantava nos tempos em que o sangue ainda não corria.
Deu tempo também de ver ao vivo o que se tornaria uma foto que ficou famosa no mundo inteiro: a queima de livros que trazia à memória o nazismo alemão.
Via-se então que não apenas o passo de ganso característico dos militares chilenos os aproximava de seus congêneres de outros tempos na Alemanha.
Tornou-se obrigatório deixar um pouco de lado o profissionalismo para oferecer-me como muleta (inútil, logo se veria) a pais de brasileiros exilados no Chile e desaparecidos desde o golpe.
Acompanhava-os ao Estádio Nacional, transformado em campo de concentração e morte, no que acabava sendo uma tortura adicional à falta de notícias sobre os filhos.
Ninguém dava informações à porta do estádio e, na falta delas, os parentes dos presos trocavam os piores presságios e contavam as mais horríveis histórias, que, ao longo dos anos, acabaram se provando verdadeiras, terrivelmente verdadeiras.
Dizia-se, por exemplo, que o cantor e compositor Victor Jara, que era adepto declarado da Unidade Popular, a coligação que o golpe apeou do poder, tivera os dedos quebrados durante a tortura no estádio, para que nunca mais tocasse as canções que embalavam os sonhos da esquerda no poder.
Jara não morreu no Estádio Nacional de Santiago, mas foi torturado até a morte no Estádio Chile, outro campo de concentração.
É fácil para qualquer ser humano com um dedo de sensibilidade sentir o pavor de pais que, primeiro, haviam perdido seus filhos para o exílio, depois do golpe no Brasil, e agora viam fugir a perspectiva de revê-los ainda que massacrados, mas pelo menos vivos.
Havia toque de recolher, primeiro a partir das 18h. Depois, das 20h. Eu me hospedara no então Hotel Carrera Sheraton, atrás do Palácio de la Moneda em que Allende se matou.
As noites eram intermináveis, trancado no quarto.
Olhava pela janela, via os sinais do ataque da Força Aérea ao palácio, uma sombra na praça vazia.
Ninguém na rua.
O semáforo, no entanto, continuava mudando do verde para o amarelo, para o vermelho, para ninguém, salvo um ou outro veículo militar, enquanto ao longe se ouvia o "ratatá" das metralhadoras, porque, dia após dia, noite após noite, "están matando chilenos/ay que haremos/ay que haremos", como cantavam os Quilapayún.
Ninguém no Chile os ouvia.
CLÓVIS ROSSI é colunista da Folha
quarta-feira, 25 de setembro de 2013
CRONOLOGIA DE UM ABSURDO
A forma obstinado com que a Aristocracia rural brasileira lutou para manter a escravidão é algo para impressionar qualquer um mais desavisado.
A pressão sobre o governo do Imperador D. Pedro II foi tão forte que este, encurralado, enfrentou até a Inglaterra, grande potência de sua época.
De um jeito ou de outro a força da aristocracia se fez valer, de tal forma, que o Império brasileiro acabou criando leis que vão das que foram feitas para não serem cumpridas até as que provocaram grandes risadas pelo absurdo que representavam.
Vejam como foi a Cronologia de um absurdo:
- 1826: para reconhecer a independência do Brasil, a Inglaterra exige, entre outras coisas, que o Brasil acabe com o tráfico de escravos num prazo máximo de cinco anos. Precisando do reconhecimento inglês, D.Pedro I se compromete atender a exigência.
- 1831: Lei brasileira realmente proíbe o tráfico de escravos, entretanto, é feita com tantos mirabolismos que, na prática, dispensa ser atendida. É a famosa “Lei para inglês ver” que iria entrar para nosso anedotário.
- 1843: Cansada de ser embromada a Inglaterra parte para a retaliação. Todos os produtos brasileiros vendidos na Inglaterra são sobretaxados. A intenção dos ingleses é clara. Para não ter prejuízos financeiros o Brasil deve fazer valer a Lei e acabar com o tráfico de escravos.
- 1844: surpreendentemente o Brasil parte para o confronto. Através da aprovação da Tarifa Alves Branco. Os produtos ingleses vendidos no Brasil perdem as vantagens que possuíam desde os Tratados de Stragford, em 1810.
- 1845: Indignados os ingleses promulgam o bill Aberdeen. Essa estranha Lei se auto permitia atacar qualquer embarcação que transportasse escravos, apreender e liberar a “carga” e levar a tripulação para a Inglaterra sendo submetida a julgamento pelas Leis inglesas. Detalhe importante: a Lei delimita a ação ao hemisfério sul para evitar qualquer conflito com outro país escravagista, os Estados Unidos, do hemisfério norte.
- 1850: fragilizados por inúmeros incidentes e temendo algo que o levasse a uma situação humilhante, o governo brasileiro edita a Lei Eusébio de Queirós, que proíbe o tráfico de escravos para o Brasil. Na verdade essa Lei expressa o que a lei anterior já deveria ter acabado.
- 1863/1865: Os Estados Unidos alteram sua Constituição liberal para tornar extinta, em todos os Estados, a escravidão. O Brasil passa a ser a única grande nação escravagista do ocidente.
- 1870: Após o fim da guerra do Paraguai e o retorno do exército fica evidente a postura favorável a abolição adotada pelos comandantes militares. Os militares anunciam que se recusam a fazer o papel de “capitão do mato” (caçadores de escravos). Além disso, funda-se o Partido Republicano unindo as idéias República-abolição.
- 1871: Em 28 de setembro, depois de discussões intermináveis, é assinada a Lei 2040, também conhecida como Lei Visconde do Rio Branco, ou ainda, Lei do Ventre-Livre. Fica determinado que os filhos de escravos sejam considerados livres, mas mantém os pais na condição de escravos. O proprietário dos pais deverá se responsabilizar pela criança e seu sustento até a idade de 7 anos, e a partir disso, não fala mais nada. É mais uma Lei ridícula, um paliativo para manter a escravidão. Muitas pesquisas demonstram que aumenta a mortalidade infantil visto o descaso dos fazendeiros com os recém-nascidos.
- 1880: é criada a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão reunindo pessoas como Joaquim Nabuco e José do Patrocínio. Vários clubes abolicionistas já existiam no país e lutavam como podiam pela abolição. Uma das maneiras evidentes era juntando recursos para comprar cartas de alforria, outras era auxiliando escravos em fuga. Ocorrem sérias desavenças com denúncias de assassinatos de abolicionistas em várias partes do país.
- 1884/1885: O político brasileiro Souza Dantas defende uma Lei que considere livre todos os escravos a partir de 60 anos. Tal proposta causou indignação entre os escravagistas e após acalorados debates é aprovada a Lei Libero-Badaró que torna livre os escravos a partir dos 65 anos e não 60. A Lei dos Sexagenários será chamada nos jornais de a “Lei da Grande Risada”, por motivos óbvios e que dispensam comentários.
Somente, e tão somente em 1888 é assinada a famigerada “Lei Áurea” que aboliu a escravidão, mas que liberou o Estado de qualquer compromisso para os recém libertos. Uma abolição capenga e incompleta.
A questão da escravidão no Brasil mostra claramente a extensão do poder da Aristocracia rural na política brasileira. Demonstra que o Brasil possuía (e ainda possui) uma das elites mais retrógradas e reacionárias do mundo, capaz de lutar de corpo e alma para manter privilégios até mesmo, ultrapassados.
Talvez, assim se entenda porque é tão difícil discutir, de forma técnica e racional, reforma agrária em nosso país.
Prof. Péricles
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
DE OLHOS BEM ABERTOS
Por Jacques Gruman
Pessoas me perguntam sobre esquerda judaica ou judeus de esquerda. Algumas demonstram uma curiosidade legítima, enriquecedora. Perguntam para estabelecer um diálogo, para entender o Outro. Outras, no entanto, usam seu desconhecimento de maneira agressiva. Não perguntam, provocam. Não dialogam, tratam de impor conclusões sem dar chance a uma verdadeira interlocução. No fundo, não estão interessadas em ouvir. Usam a situação de crise recorrente no Oriente Médio para criminalizar todo o povo judeu. Uma artimanha viciosa, responsável por alguns dos mais terríveis banhos de sangue da História. Ignorância nunca deu bom caldo.
Para meus leitores sensíveis, passo algumas informações, que estão longe, muito longe de esgotar o assunto. É difícil entender a História da esquerda e dos movimentos democráticos do século XX sem estudar o papel que nela tiveram importantes segmentos judaicos. A primeira expressão organizada do movimento social-democrata russo foi um partido judaico: o Bund (União dos Operários Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia), formado em 1897. Foi, até 1905, a maior organização operária da Rússia. Entre os delegados que fundaram o Partido Operário Social-Democrata Russo, mais tarde Partido Comunista, vários eram do Bund.
Incontáveis militantes e teóricos bolcheviques vieram dos shteitlach, pequenas aldeias da Europa Oriental, quase sempre com população majoritariamente judaica. Breve e triste parênteses: apesar desse protagonismo, os comunistas judeus da URSS não escaparam dos assassinatos stalinistas, entre os quais ficou tristemente célebre o Processo dos Médicos, nos anos 50. Durante a Segunda Guerra Mundial, com o massacre sistemático nos guetos e campos de extermínio, muitos judeus engajaram-se em destacamentos guerrilheiros, os partisans, lutando bravamente contra o nazifascismo. Uma história gloriosa, que o stalinismo tentou, sem sucesso, apagar.
Alguém já ouviu falar da Brigada Botwin? Formada por judeus de várias nacionalidades, integrou-se às Brigadas Internacionais que lutaram contra o fascismo na Espanha no final dos anos 30. Nos Estados Unidos, muitas vezes citados pelos anti-semitas como sede do “judaísmo internacional”, a participação judaica no movimento operário e na luta pelos direitos civis não pode ser subestimada. Em 1964, Martin Luther King disse: “A contribuição do povo judeu para a luta dos negros por liberdade é tão grande que não tenho condições de dimensioná-la”. O cantor negro Paul Robeson, perseguido pelo macarthismo, expressou sua proximidade com os judeus progressistas cantando, em 1949, num concerto em Moscou, o Hino dos Partisans.
Ainda no campo da luta contra o preconceito, é importante lembrar um judeu lituano, que imigrou jovem para a África do Sul. Me refiro a Joe Slovo. Colega de faculdade de Nelson Mandela, participou ativamente da criação do Conselho Nacional Africano, e seu partido, o PC da África do Sul, teve papel destacado no combate ao apartheid.
Há testemunhas de que, na Argentina, durante a ditadura militar, os presos políticos judeus eram torturados com especial sadismo. Existem registros da existência de suásticas nas câmaras de tortura. No Brasil, muitos voluntários judeus serviram na FEB. Tinham consciência de quem era o inimigo e da importância histórica de derrotá-lo. Mesmo antes da guerra, migrantes judeus estiveram engajados em lutas democráticas, às vezes sob risco de deportação. A polícia de Filinto Müller não dava trégua aos freqüentadores da Cozinha Operária, que funcionava na Praça Onze, no Rio de Janeiro. Depois de delações, vários deles foram mandados para a morte.
Sei o “problema” para os que têm sangue nos olhos é o Oriente Médio. “Olha só o que vocês estão fazendo lá!”, foi o que já ouvi de gente bem formada. Assim mesmo, vocês, sem distinções, como se os judeus fossem um corpo homogêneo. É o mesmo mecanismo psicopolítico que atribui a todo o povo judeu a culpa pela execução de Cristo.
Antes de comentar o assunto, dou a palavra e os gestos ao pianista e maestro Daniel Barenboim. Foi o criador, junto com o intelectual palestino Edward Said, da East-West Divan Orchestra, que reúne jovens músicos israelenses, palestinos e de vários países árabes. O projeto, inicialmente musical (embora com a intenção de aproximar gente que não costuma reconhecer o Outro), evoluiu. Barenboim acaba de anunciar a criação, em Berlim, de uma academia para músicos, que terá aulas de música, história e filosofia. Os formados devem integrar a orquestra. Sem deixar de condenar a ocupação de territórios palestinos, Barenboim, que tem passaporte israelense e palestino, trata de usar as ferramentas de que dispõe para abrir caminhos de entendimento.
Os judeus de esquerda e os que se identificam como humanistas têm lutado contínua e arduamente para que se chegue a um acordo de paz no Oriente Médio. Individual e institucionalmente. Em Israel, além das formas tradicionais de participação política (partidos, sindicatos), há muitos grupos que se organizam para viabilizar a solução de dois Estados, dois povos (cada vez mais difícil com o crescimento de correntes fundamentalistas).
Não raro, enfrentam, ao lado de palestinos, o exército de ocupação israelense. Um caso exemplar foi a aldeia de Budrus, documentado pela brasileira Julia Bacha em filme premiado em vários festivais. Em várias partes do mundo, setores das comunidades judaicas mandam sinais de crítica à brutalidade da ocupação israelense, de repúdio ao uso da violência (de ambos os lados) para resolver as disputas territoriais.
Citações a textos abjetos, como os Protocolos dos Sábios de Sião, aparecem em sites esquerdistas, o que é, no mínimo, escandaloso. Falar-se em “conspiração judaica mundial”, “judeus financistas que dominam o planeta”, é uma homenagem suja ao ditador nazista que levou à Segunda Guerra Mundial.
Termino com uma piada. Velhíssima. Autorizo meus leitores judeus a lançarem um herem por esse repeteco. Um náufrago judeu chega a uma ilha. Anos depois, é resgatado. O capitão do navio que o recolheu ficou intrigado. “Não consigo entender. Na ilha, você construiu duas sinagogas. Para quê? Você é um só!”. O judeu deu um sorriso irônico e respondeu: “É que eu só freqüento uma delas. Na outra, oy vey, não entro nem amarrado!”. Assim somos. Múltiplos, de direita e de esquerda, religiosos e ateus, interessantes e chatos, rígidos e flexíveis, nacionalistas e internacionalistas, do bem e do mal. Quem nos aponta o dedo e exige ordem unida, bem, esses convido a pegar um barco e dar um pulo na ilha do náufrago. A segunda sinagoga os espera.
Jacques Gruman
Engenheiro químico é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.
sexta-feira, 20 de setembro de 2013
MUITO QUENTE, MUITO QUENTE
Tudo bem, já que o assunto são as armas químicas vamos falar de Kim Phuc.
Kim Phuc, você sabe quem é? É aquela menina que aparece correndo nua, aos prantos por uma estrada, em foto tirada em 8 de junho de 1972, durante a Guerra do Vietnã. Ao seu lado, à esquerda está Phan Thanh Phouc, seu irmão e à direita, de mãos dadas, dois primos, Ho Van Bon e Ho Thi Ting.
Além de Kim todas as crianças da foto estão chorando desesperadamente. Segundo testemunhas Kim gritava “muito quente, muito quente”. Atrás deles, aparece na foto, um pequeno grupo de soldados norte-americanos que parecem marchar tranquilamente com certo ar de comicidade.
Nós não podemos ver, mas, Kim está em chamas, sofrendo os efeitos do chamado “agente laranja” uma impiedosa arma química despejada por bombardeios norte-americanos cujo fogo é invisível aos olhos. É por isso que Kim está nua. Toda sua roupa já havia sido consumida pelas chamas.
Segundo estimativas, o glorioso exército defensor dos direitos humanos e da liberdade despejou 88,1 milhões de litros desse armamento químico durante a Guerra, entre 1962 e 1975.
Se o assunto é armas químicas vamos lembrar que Kim sofreu queimaduras de terceiro grau em 30% de seu corpo, passou 13 meses no hospital sofrendo dores atrozes e enxertos de pele, e que seu irmão Phan perdeu um olho e a sanidade.
Vamos falar sim. Vamos falar que mais de 400 mil pessoas morreram vítimas dos ataques químicos patrocinados pelos Estados Unidos e que cerca de 500 mil crianças nasceram com alguma deficiência física em função de complicações provocadas pelos seus gases tóxicos.
E por falar nisso, lembrando governos que massacram seus povos, como se diz que AL-Assad faz na Síria com seu povo, lembremos da década de 50, dos negros pobres que habitavam St. Louis sendo informados que haveria testes militares envolvendo fumaças de iluminação, fumaças que seriam inofensivas, mas que, na verdade, um número sem precedentes de mortes por câncer numa mesma região. Mas eram negros e pobres...
Estava “Muito quente, muito quente” antes de morrer, em Hiroshima, Nagasaki, Vietnã, Iraque, Palestina, St Louis, onde milhões de pessoas pereceram vítimas de armas químicas e nucleares promovidas pelo “guardiães do bem” – as forças armadas dos Estados Unidos.
E, diante de tudo isso é de se perguntar: Que moral tem o governo da nação americana para se tornar juiz de outras nações?
Então, tudo bem, vamos falar de hipocrisia.
Prof. Péricles
terça-feira, 17 de setembro de 2013
UM HOMEM E A CRUZ DE TODOS
Com certeza o pai de Jean, foi seu primeiro modelo. Sr. Jean Jacques Dunant, comerciante, era membro do Conseil Représentatif, organismo da cidade de Genebra que cuidava de órfãos e ex-reclusos, mas, sua mãe Antoinette Dunant-Colladon, filha do Chefe do Hospital de Genebra e que trabalhava no setor de caridade, especialmente com pobres e doentes, também teve sua colaboração na formação da personalidade do jovem.
Uma das experiências que marcaram Jean ocorreu numa viagem que fez com seu pai para a França, quando foi testemunha involuntária de tortura de prisioneiros de guerra.
Essas imagens violentas e covardes jamais sairiam de sua mente.
Jean começou a vida adulta sendo um homem de negócios como seu pai, embora não tivesse talento nenhum para isso.
Corajoso como ninguém em sua cidade, e inconformado com as dificuldades nos negócios devido às guerras intermináveis, viajou para a Itália em junho de 1859, aos 31 anos, para falar pessoalmente com o Imperador francês Napoleão III, que comandava em pessoa suas tropas, aliadas da Itália, no esforço para expulsar os austríacos do solo italiano. Jean queria um encontro nem que fosse numa barraca de campanha para pedir ao imperador que amenizasse as medidas de guerra impostas à região. Essa loucura, facilmente poderia lhe custar a vida.
Desembarcou à tardinha na estação de Solferino e de carro alugado (já que ninguém seria louco suficiente para levá-lo), rumou para o campo de batalha, ante a estupefação das pessoas que viam naquilo um ato suicida.
Pior que isso aguardava Jean que, na noite daquele dia foi testemunha da terrível batalha de Solferino. Naquela única noite de 24 de junho de 1859, 40 mil soldados morreram ou ficaram gravemente feridos.
Ficou chocado com a dor, o silêncio dos mortos e os gritos alucinantes dos feridos. Percorreu a pé todo o campo de batalha e chorou compulsivamente vendo um jovem soldado morrer em seus braços.
Esqueceu completamente os objetivos comerciais de sua viagem e por vários dias peregrinou entre os acampamentos de feridos ajudando em tudo que pudesse. Presenciou amputações e cirurgias feitas sem qualquer anestesia num ciclo de dor interminável.
Desistiu do Imperador e voltou pra casa, em Genebra, e nunca mais seria o mesmo.
Passaria o resto da vida a se dedicar pelos fragilizados e feridos.
Em 1862 escreveu com recursos próprios “A Memory of Solferino” uma leitura candente das tristezas que assistiu.
Enviou cópias do livro para políticos e militares importantes em toda a Europa. Além das dores da guerra o livro também abordou vivamente, a necessidade de se criar uma entidade internacional, composta por voluntários, para colaborar na assistência médica dos feridos de guerra e de outras tragédias.
No terreno comercial, sua dedicação à causa dos desvalidos lhe tomou tanta atenção que acabou falindo. Na área das idéias, no entanto, foi um vencedor.
Ele e seu livro são considerados o marco da fundação da Cruz Vermelha Internacional, em 1863, organismo não governamental, internacional e composto por voluntários, de atuação destacada em todo o mundo.
O comitê que presidiu durante 46 anos, foi o responsável, ainda, pela criação da Convenção de Genebra que prevê a neutralidade do corpo médico durante as guerras e o cuidado e respeito aos feridos e prisioneiros de guerra.
Jean-Henri Dunant recebeu o primeiro prêmio Nobel da Paz em 1901. Quando seu nome foi anunciado, a platéia de pé, aplaudiu a ele e a Cruz Vermelha por muitos minutos, em momento de grande emoção.
Nove anos depois, envelhecido, pobre e sozinho, de forma silenciosa se isolou na cidade de Heiden, na Suíça, vindo a falecer, no hospital dessa vila em 1910, aos 82 anos.
Definitivamente, um péssimo homem de negócios, capaz de gastar todo o recurso financeiro de estadias e viagens no tratamento de doentes que não poderiam lhe restituir o dinheiro. Mas, com certeza, um espírito iluminado que nos deixou como herança uma Instituição reconhecida e respeitada internacionalmente por seus trabalhos humanitários.
Hoje, até mesmo no Oriente não cristão, temos filias da Cruz Vermelha, na versão “Crescente Vermelha”.
E tudo isso começou, numa viagem de um jovem cabeça dura, interrompida pela crueza da guerra.
Prof. Péricles
sábado, 14 de setembro de 2013
FESTA NO OLIMPO
Numa dessas noites em que fantasias e realidades fazem folias no coração, um sonho mítico se apossou da alma.
Subia um monte, de pedras irregulares e de cores variadas, quando fui atraído pela mais bela voz já ouvida por qualquer mortal. Seguindo aquela voz maviosa cheguei até uma moça lindíssima, sentada a uma pedra e de posse do sorriso mais puro.
Ela me disse se chamar Calíope, uma das nove filhas de Zeus denominadas de Musas.
As musas (de onde deriva a palavra Museu) eram entidades invisíveis aos olhos dos mortais que inspiravam os homens ao gosto e prática das artes e do conhecimento. Calíope, a musa da Bela voz, inspirava a prática da eloqüência.
Ela me indicou uma estrada e sua firmeza foi tão eloqüente, que só se poderia obedecer e prosseguir.
Próximo ao pico do monte, havia um castelo. Em sua soleira duas irmãs de Calíope, Euterpe inspiradora da música e Clio, a senhora dos historiadores. Ambas se afastaram para que eu pudesse entrar.
Dentro do Castelo, um verdadeiro seminário de seres celestiais: vi uma ninfa, jovem que espalhava a alegria e a felicidade conversando com Hércules, herói eterno e descrente; vi sereias e centauros além da Medusa, nervosa, escovando seus cabelos de serpentes.
Num canto, Atena, a Deusa da Sabedoria, acalmava uma discussão entre Ares, deus da guerra irrequieto e Hefesto, divindade do fogo.
Ouvi Cronos, que nunca gostou de perder tempo, chamando a atenção de Hermes, o mais rápido dos mensageiros que, segundo Cronos, havia se atrasado para a festa.
Maravilhado com toda aquela visão extraordinária, nem percebi a chegada de um senhor barbudo e de olhos grandes que se aproximou de mim com uma taça na mão.
- Linda essa decoração, não acha? Foi feita pelo próprio Apolo, deus das artes, disse apontando para a abóbada mais formosa, amparada por pilares de cores múltiplas e tranqüilas. Linda sim, pensei, mas ainda em construção...
Lendo meus pensamentos ele continuou:
- Aqui no Olimpo não temos pressa de acabar qualquer coisa porque somos eternos, como você bem sabe, e estamos sempre em construção, como todos os homens, disse, enquanto levava a taça à boca.
Mas, isso é uma loucura falei... o Olimpo não existe... vocês não existem.
O barbudo deu uma risada tão saborosa quanto seu vinho.
- Não existimos? Tem certeza?
Claro, vocês são apenas mitos e...
- E o que são mitos? São mentiras?
Não, não são mentiras, mas...
- Mitos não existem?
Sim, existem, mas...
- Mitos, meu pobre rapaz, são as únicas verdades do infinito. São o que de você sobrevive ao tempo e à sua morte.
Abri a boca, mas achei que qualquer coisa que eu dissesse seria ridícula.
O senhor barbudo percebendo minha hesitação bateu gentilmente em meus ombros, sorveu mais um gole da taça que jamais seca, e concluiu...
- Mito é tudo que você cria para suportar a vida e para se convencer que realmente é diferente de todos os outros, é único e melhor.
- Mortais criam mitos todos os dias para se justificarem em suas pequenezas, em suas insanidades e fraquezas. Criam mitos para preencher os vazios de tudo aquilo que não faz sentido e explicar porque seu amor é tão frágil, sua paixão tão curta e sua juventude tão velha...
Enquanto Helena, a mais bela, trazia num pote o néctar dos deuses, a ambrosia, e a oferecia as divindades, Zeus foi se afastando de mim com um sorriso cansado, porém eterno dizendo: E você diz que nós não existimos? Ou será que quem não existe é você? O que seria você sem seus mitos de infância, de adolescência, de crença e de preconceitos? Seria, talvez, muito menos real do que nós, os deuses do Olimpo.
E enquanto despertava amparado por Morfeu, o deus dos sonhos, navegando em águas revoltas do universo de Posseidon, trazia na mente a pergunta que agora me inquieta: afinal, temos uma história real, ou nossa realidade são apenas mitos que criamos?
Despertei ainda ouvindo distante a voz do deus dos deuses: “Nós somos aquilo que acreditamos ser. Somos o mito que escolhemos”.
Prof. Péricles
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