quinta-feira, 11 de agosto de 2016

MOMENTO ÚNICO


Por Luis Fernando Veríssimo


Quem quer ficar sozinho num mundo que não domina e mal compreende, sem o apoio e o consolo de uma teologia, qualquer teologia?

Gustave Flaubert escreveu, numa carta para um amigo: “Quando os deuses tinham deixado de existir, e o Cristo ainda não viera, houve um momento único na História, entre Cícero e Marco Aurélio, em que o homem ficou sozinho”.

As divindades pagãs nunca deixaram de existir, mesmo com o triunfo do cristianismo, e a Roma evocada por Flaubert era apenas Roma, não era o mundo. Mas, no breve momento de solidão flagrado pelo escritor, o homem ocidental se viu livre da metafísica — e não gostou, claro. 

Quem quer ficar sozinho num mundo que não domina e mal compreende, sem o apoio e o consolo de uma teologia, qualquer teologia? O monoteísmo paternal substituiu as divindades convivais da antiguidade, em pouco tempo Constantino adotaria o cristianismo como a religião do império e o homem perdeu o seu momento único, a oportunidade de se emancipar dos deuses.

A ciência, pelo menos até Einstein, nunca pretendeu desafiar a metafísica dominante, mesmo quando desmentia seus dogmas. 

Copérnico cumpria seus deveres de cônego da Catedral de Frauenburg enquanto bolava a heresia que destruiria mil anos de ensinamento da Igreja, e seu tratado revolucionário sobre o universo heliocêntrico foi dedicado, sem nenhuma ironia que se saiba, ao Papa Paulo III.

Galileu também foi inocentemente a Roma demonstrar na corte papal o telescópio com o qual confirmara a teoria explosiva de Copérnico, talvez o exemplo histórico mais acabado de falar em corda em casa de enforcado. Quando foi julgado pela Inquisição, Galileu concordou em renunciar à ideia maluca de que a Terra se movia em torno do Sol, para ficar vivo, e a frase famosa que teria dito baixinho — “E pur si muove” — só foi acrescentada ao relato do julgamento um século depois, quando provavelmente também se originou a frase “Se não é verdade, é um bom achado”.

Quando o astrônomo Joseph Halley, o do cometa, entusiasmado com a recém-publicada “Principia”, de Isaac Newton, quis dar uma ideia da importância da teoria newtoniana da gravidade e do movimento dos astros, disse que, com ela “fomos admitidos aos banquetes dos deuses” pois, até então, a ciência só especulara sobre a geometria celestial — algo como o Woody Allen dizendo que fazer cinema sério, ao contrário de comédias, era sentar-se na mesa dos adultos.

Com Newton, passamos a conversar seriamente com os deuses. Halley preferiu “deuses” a Deus, evocando o tempo pré-cristão em que as divindades andavam entre os homens e podiam até ser seus comensais. O trabalho de Newton fazia parte da “filosofia natural”, o pseudônimo com que, na Europa do século XVII, a ciência especulativa convivia com os dogmas religiosos.

Os banquetes com os deuses não eram exatamente atos de rebeldia contra a teologia, mas uma maneira de trazer a metafísica de volta a um plano humano.

Mas o momento único da emancipação possível já passara.


Luis Fernando Veríssimo, escritor.

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