quarta-feira, 31 de agosto de 2016

DILMA E O OLHAR QUE ATRAVESSOU O TEMPO


Por Iana Soares


Em 2011, a revista Época publicou uma foto inédita da presidente Dilma Rousseff aos 22 anos, durante interrogatório em um tribunal da Justiça Militar, em novembro de 1970. Ao fundo da cena, dois militares tapavam o rosto para a História.

A menina tinha sido torturada durante 22 dias e estava lá: olhar altivo, pescoço erguido, mãos apertadas.

O drama alcança o ápice e, na polissemia da imagem, faz caber a leveza de quem fez, do corpo violentado, um lugar forte. O punctum de Barthes está nos olhos e afeta quem permanece diante da fotografia.

Nestes dias, o fotógrafo Lula Marques postou uma imagem das duas Dilmas.

O ângulo escolhido aproximou quase cinco décadas. A guerrilheira e a presidente habitam a mesma sala, nessa magia esquisita que nos faz passear pelo tempo, meio zonzos e sem entender o que nos trouxe até aqui.

Na pausa de um discurso, observamos, em 2016, os olhos daquela menina.

O corpo da presidente atravessou os anos para encontrar-se agora com o avesso da História, que talvez seja a mesma. Eterno retorno.

Ontem ela discursou para 81 senadores e milhões ao redor do mundo.

Os rostos já não estão escondidos: muitos dos que a julgam são alvo de denúncias e processos de corrupção. O silêncio conivente parece maior que os gritos de quem brada contra o absurdo.

Eduardo Cunha, disparador do processo de impeachment, foi cenicamente afastado da Câmara, mas segue impune. Cínicos, soltarão fogos, beberão champagne, falarão de vitória.

O dia amanhece estranho.

Há quem sinta a profunda tristeza da farsa. É golpe.

No entanto, há quem amanheça em festa. Perdemos todos e ainda existe quem queira celebrar.

É preciso retomar as esperanças e reinventar a luta por dias melhores.

Apesar de tudo, amanhã há de ser outro dia, insiste a canção.

O que permanece quando parece que muito foi arrancado de nós?

É preciso seguir, atentos. Pode haver alguma pista naquele olhar que atravessou o tempo.



segunda-feira, 29 de agosto de 2016

RI, PALHAÇO!


Por Luis Fernando Verissimo


Depois da provável cassação da Dilma pelo Senado, ainda falta um ato para que se possa dizer que la commedia è finita: a absolvição do Eduardo Cunha.


Nossa situação é como a ópera “Pagliacci”, uma tragicomédia, burlesca e triste ao mesmo tempo. E acaba mal.


Há dias li numa pagina interna de um grande jornal de São Paulo que o Temer está recorrendo às mesmas ginásticas fiscais que podem condenar a Dilma. O fato mereceria um destaque maior, nem que fosse só pela ironia, mas não mereceu nem uma chamada na primeira página do próprio jornal e não foi mais mencionado em lugar algum.


A gente admira o justiceiro Sérgio Moro, mas acha perigoso alguém ter tanto poder assim, ainda mais depois da sua espantosa declaração de que provas ilícitas são admissíveis se colhidas de boa-fé, inaugurando uma novidade na nossa jurisprudência, a boa-fé presumida.


Mas é brabo ter que ouvir denúncias contra o risco de prepotência dos investigadores da Lava-Jato da boca do ministro do Supremo Gilmar Mendes, o mesmo que ameaçou chamar o então presidente Lula “às falas” por um grampo no seu escritório que nunca existiu, e ficou quase um ano com um importante processo na sua gaveta sem dar satisfação a ninguém. As óperas também costumam ter figuras sombrias que se esgueiram (grande palavra) em cena.


O Eduardo Cunha pode ganhar mais tempo antes de ser julgado, tempo para o corporativismo aflorar, e os parlamentares se darem conta do que estão fazendo, punindo o homem que, afinal, é o herói do impeachment. Foi dele que partiu o processo que está chegando ao seu fim previsível agora.


Pela lógica destes dias, depois da cassação da Dilma, o passo seguinte óbvio seria condecorarem o Eduardo Cunha. Manifestantes: às ruas para pedir justiça para Eduardo Cunha!


Contam que um pai levou um filho para ver uma ópera. O garoto não estava entendendo nada, se chateou e perguntou ao pai quando a ópera acabaria. E ouviu do pai uma lição que lhe serviria por toda a vida:


– Só termina quando a gorda cantar.


Nas óperas sempre há uma cantora gorda que só canta uma ária. Enquanto ela não cantar, a ópera não termina.


Não há nenhuma cantora gorda no nosso futuro, leitor. Enquanto ela não chegar, evite olhar-se no espelho e descobrir que, nesta ópera, o palhaço somos nós.




Luis Fernando Veríssimo, escritor gaúcho.

sábado, 27 de agosto de 2016

QUANDO AS REGRAS MUDAM

Um Farroupilha

José Antônio Flores da Cunha foi um importante político e militar do Rio Grande do Sul da primeira metade do século XX.

Era um dos homens de confiança do velho caudilho Borges de Medeiros que governou o Rio Grande do Sul por quase trinta anos.

Ele e Getúlio Vargas traíram o velho no Pacto de Pedras Altas, em 1923 afastando-o da vida política gaúcha.

Aliás, a relação entre Flores da Cunha e Getúlio Vargas foi do amor ao ódio extremo.


Vitoriosos na Revolução de 30, Getúlio foi para a Presidência do Brasil e nomeou Flores interventor no estado do Rio Grande do Sul, cargo que exerceu até o golpe do estado novo de 1937, quando Getúlio se tornou Ditador e então, os dois romperam para sempre.

Flores da Cunha se opôs à Ditadura Varguista, foi destituído do cargo de interventor, perseguido, exilou-se no Uruguai e, mais tarde, acabou tramando contra a própria vida do ditador, sendo preso na Ilha Grande.

Era uma figura ímpar, com uma personalidade marcada, tanto pela sensibilidade que lhe deu fama de chorão, como pela aspereza que o marcou nos campos de batalha das revoluções do Rio Grande.

Adorava jogos, desde baralho até corrida de cavalos e mulheres bonitas.

Ao final da vida não apresentava nenhum patrimônio, apesar de filho de família rica e de muitos anos de poder. Questionado sobre isso por um jovem jornalista Flores teria respondido que teve uma vida plena, porém marcada por mulheres ligeiras e cavalos lerdos.

Conta-se que, certa vez, um paulista jogava animada mesa de pôquer com o general e levava a melhor a cada rodada. A cena era repetida, o paulista recebia as melhores mãos, vencia, recolhia as fichas enquanto Flores da Cunha bufava de raiva.

Em certo momento o centro da mesa está forrado de fichas e Flores dobra a aposta. O paulista desconfia e paga para ver. Flores abre o jogo e mostra uma mistura horrorosa onde nenhuma carta combina com a outra. O visitante abre um largo sorriso e move-se para recolher as fichas, mas é interrompido por Flores que, coloca o revólver em cima da mesa e diz

- Eu ganhei rapaz. Aqui no Rio Grande cinco cartas diferentes uma da outra é chamado de Farroupilha e é o jogo mais alto.

Olhando o revólver, o paulista ficou quieto e achou melhor aceitar os “argumentos” do homem.

No final da madrugada, o jovem apresenta, eufórico, um “farroupilha”. Mas, antes de recolher as fichas é novamente interrompido pelo revólver de Flores que diz

-Não rapaz. Farroupilha é jogo tão importante que só vale um por noite.

Pobre paulista. Não tinha nenhuma chance de ganhar um jogo contra “regras” tão instáveis.

Algo semelhante ao que está acontecendo agora no Senado Federal.

A presidenta Dilma Rousseff não cometeu nenhum crime, nenhum ilícito.

Contra todas as acusações seu advogado já apresentou uma lista de argumentos destruidores que, em termos de legalidade ou de moralidade, não tem nem como contestar.

Porém, tudo já está previamente arranjado e os “argumentos” dos acusadores, embora não sejam um revólver, como do general, são tão ou mais ilícitos e “invencíveis”.

Não se trata de justiça ou moralidade, é um golpe político de soma simples de votos já definidos independente de Dilma ter razão.

O impeachment, instrumento criado para coibir atos ilícitos do presidente da república e retira-lo do poder por improbidade tornou-se mero instrumento político de facções que, unidas, possuem maioria de votos.

Quando as regras mudam o jogo já está jogado. Já está decidido e pronto.

É um jogo sem regras, ou melhor, de regras que variam conforme os interesses de um dos competidores, no caso, em favor dos golpistas.

Assistir um grupo de pessoas comprovadamente comprometidas com desvios de recursos, abuso de poder em causa própria e atos corruptos, julgando uma presidenta que nenhum ilícito cometeu é como ver Al Capone e sua turma julgando os habitantes de Chicago.

Enquanto para Flores da Cunha o azar foram mulheres ligeiras e cavalos lerdos, para o Brasil o azar são, golpistas organizados e povo alienado.

O resultado, a gente já conhece.




Prof. Péricles

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

VIAGEM AO UNIVERSO DOS COXINHAS


Por Ayrton Centeno

Agora que o Coxismo pretende moldar o país a sua imagem e semelhança, é crucial entendê-lo. Adentrá-lo, penetrá-lo em profundidade. Visitar, percorrer e desbravar o território do fenômeno. Mas quem viajar ao Universo Coxa deve-se preparar para um impacto: é um mundo habitado exclusivamente por certezas absolutas. Seus nativos acreditam integralmente em tudo que lhes convém acreditar. Para eles, a ferramenta do conhecimento não é a experiência e a reflexão, mas o desejo. É ele que constrói a convicção. Acreditam, então existe.

O Universo Coxa reproduz uma imensa caverna de Platão. Lá fora impera o Nada. O mundo real são as sombras projetadas pelos telejornais no fundo da cova. Nada se transforma, tudo permanece o mesmo. Bem, para dizer a verdade, algo muda aqui ou ali. Por exemplo, agora não se vê mais aquelas faixas “Somos todos Cunha”. Ou seja, algo muda para tudo ficar igual.

Viajar ao Universo Coxa é fácil, hoje em dia. Basta, geralmente, olhar em torno. Ou aguçar o ouvido. Se você estiver em alguma região onde os Coxas vivem, acasalam e se reproduzem será moleza ainda maior: Moinhos de Vento, em Porto Alegre, Jardins e arredores na Pauliceia Comportada, circuito Ipanema-Leblon no Rio por aí… Se o Coxismo for seu objeto de estudo, considere-se em pleno campo de observação do fenômeno. Pode começar, por exemplo, examinando o que faz o Coxa ser Coxa. Que afinidade mantém o grupo entre seus membros? Quais elementos forjam sua identidade? O que há de consenso interno para lhes servir de amálgama?

Esclarecidos tais pontos, passa-se ao oposto: como se distinguem os diferentes espécimes que habitam o Mundo Coxa? Porque – sabe-se bem – nenhum Coxa é exatamente igual a outro Coxa. O que não impede que, a grosso modo, todos se alinhem à direita. Fosse um time de futebol, haveria um deserto à esquerda do gramado e um tumulto no lado oposto. Toda bola lançada à esquerda seria desperdiçada ou do adversário. À direita, confusão total, com todos os atletas querendo chutar a mesma bola com o pé direito e no canto direito da meta.

Deve-se pensar bem antes de xingar um Coxa de fascista. A começar pelo fato de que muitos Coxas não sabem bem o que o termo significa. Ainda não estudaram este ponto. É como você ofender alguém em Islandês ou Aramaico. Ou chamar alguém de filho da puta quando a criatura não sabe o significado de “filho” ou “puta”. Seria um simples rosnado que poderia deixar o destinatário aborrecido mais pelo tom do que pela percepção. Pior ainda se o “Fascista!” for interpretado ao contrário, algo como “Faixinha!”, quer dizer, robertocarleanamente, “Meu amigo de fé, meu irmão, camarada”. Então, aquela criatura responde “Meu bródi!” e acaba se apegando a você. E, como somos eternamente responsáveis por aquele a quem cativamos – assim nos ensina O Pequeno Príncipe — você pode acabar indo ao cinema com aquele armário afetuoso com tatuagem do Bolsonaro no bíceps. Ineficaz e insalubre, portanto.

No cartesiano esforço para segmentar os Coxas, identificamos a categoria dos Coxas Brancas. São os torcedores do Coritiba e os naturais de Curitiba. Como o Universo Coxa foi turbinado e expandido a partir da República das Araucárias, deve-se dizer que compõem, com os paulistas, o núcleo duro do Coxismo nacional, de onde partem as diretrizes, ornamentos e modinhas das marchas coxas.

Com o prestimoso auxílio do açougueiro da esquina, foi possível identificar os dois grupos e tendências ideológicas predominantes no Universo Coxa, um moderado e outro radical. O primeiro é o Coxão Mole, assim desairosamente apelidado pelos adversários. São os Coxas de butique. Eleitores do Aécio, já votaram na Marina e até – credo! — no PT. Vão às passeatas coxas mais para exibir os tênis e óculos de grife, levar os totós para fazer cocô e tirar selfies. Que postam no Facebook sempre mostrando as canjicas.

Já o pessoal do Coxão Duro diz no nome ao que veio. Quando ouve falar a palavra “diálogo” puxa o revólver. Não tem conversa, é na porrada, meu! Falam entre dentes, com porrete na mão e baba no queixo, até para perguntar as horas. Acreditam que o New York Times, o Le Monde, o The Guardian e outros jornais estrangeiros são subsidiados pelo comunismo internacional para chamar o golpe de golpe. Veem os Coxas Moles com suspeição e acalentam o secreto anseio de decorar a cidade pendurando-os nos postes.

Outra segmentação é de ordem vertical. Há Coxas e, claro, Sobrecoxas. Situam-se no topo da pirâmide. Ou da Coxa. Seria aquela ponta afunilada da coxinha de padaria. Frequentam este nicho os Arautos do Coxíssimo: os ideólogos do movimento, suas lideranças, seus financiadores, donos de jornais e seus pet-colunistas, dirigentes político-partidários. São os que dão os rumos, entram com a propaganda e a grana grossa.

Desferindo certeiras tuitadas no cérebro de seu rebanho, o astrólogo Olavo de Carvalho é da primeira galera, sempre tangendo os bolsões sinceros, porém radicais do Coxismo. É Bolsonaro desde criancinha, quando escapou de ser comido, via oral, pelos comunistas. Seu bolsonarismo rendeu-lhe – e continua rendendo – uma guerra de bugios com Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino, rivais na refrega pela condição de Guia Genial dos Coxas. Joga pesado, do pescoço para cima tudo é canela. Aprecia apelidos e escrachos. Chama Constantino de “Cocô Instantâneo” e Reinaldo de “Arruinaldo”. Seu pensamento vivo: 1) a abertura das Olímpiadas mostrou que os comunistas controlam o Brasil; 2) as universidades são agências do comunismo internacional; 3) o aquecimento global é uma farsa completa; 4) o PSDB é de esquerda; 4) Obama é um agente russo.

Azevedo criticou Olavo que retrucou no seu padrão: “Cada vez que o Reinaldo Azevedo fala de mim ou do deputado Bolsonaro ele se emboneca todo e fica tocando punh… na frente do espelho…”, escreveu no Twitter.

Constantino caiu um tanto no ibope da Coxilândia depois que viajou à Disney e postou no FB uma foto com o Pateta. Embora muitos Coxas tenham achado fofo, outros não amaram tanto.

Não podemos esquecer da facção Coxabamba. Não, nada a ver com o altiplano, flautas e El Condor Pasa, que eles tem horror desses troços de índio. São os Coxas que já botaram camiseta da CBF, bateram panelas e foram pra rua com nariz de palhaço. Hoje, com a ascensão do interino, após as gravações nauseabundas de Sérgio Machado com Jucá e outros, estão meio confusos, vacilantes, enfim bambeiam hamletianamente: ser ou não Coxa? Onde eu errei, perguntam-se usando, agora, apenas o nariz de palhaço.

Finalmente, a ala Coxa da real politik. Não são Coxas orgânicos. Estão Coxas. São de conveniência. Manejam os punhais, a peçonha e as lições dos Bórgias. Sem o charuto de Capone, exalam o aroma dos Corleones. É a turma que grudou — com cola bonder — o nariz de bolota vermelha nos Coxas modelito avenida Paulista — aqueles que patrioticamente até a bunda botaram de fora para varrer a corrupção. É a patota que faz política de resultados – seja para empalmar, sem voto, o mando e o comando da nação, seja para livrar-se da cadeia. A união do útil ao agradável. São os Temer, os Padilha, os Serra, os Geddel, os Jucá, os Mendoncinha, os Cunha.

Será justo defini-los como Coxa Nostra.


quarta-feira, 24 de agosto de 2016

CUIDADO COM SEU DIÁRIO


Por Moisés Mendes

O francês Edgar Morin ainda acredita nos diários com impressões pessoais como forma de autoconhecimento. O filósofo gostaria de ver professores incentivando crianças e adolescentes a anotarem suas vivências, para que um dia possam ler o que escreveram sobre um guri, uma guria ou a professora de geografia.

Diários de adultos podem ser mais complexos, mas quase todos têm um quê de infantilidade, ou não seriam diários. Nem todos têm florzinhas, alguns são trágicos.

O diário de Getúlio Vargas, por exemplo, já avisava, 24 anos antes, o que ele poderia fazer e acabou fazendo no dia 24 de agosto de 1954. No dia 20 de novembro de 1930, ainda eufórico com a tomada do governo, escreveu: "Quantas vezes desejei a morte como solução da vida".

Getúlio escrevia sobre qualquer coisa. Anotava que Plínio Salgado, o líder da direita integralista era um caipira. Confessava que à tarde recebera "uma visita agradável" (da amante Aimée Sotto Mayor Sá), com o detalhe de que o encontro interrompia "três anos e meio de vida regular".

Tudo isso está na biografia de Getúlio que Lira Neto escreveu para a Companhia das Letras. Claro que Getúlio desejava que seus registros fossem um dia lidos por alguém — ou por muita gente. Um diário é também o desejo de invasão da própria intimidade.

Meu colega Henrique Erni Gräwer faz, há 20 anos, registros de percepções e sentimentos, nem sempre diários, com um detalhe: nunca relê. Os cadernos são guardados para um dia, que ele não sabe quando, serem abertos.

Nixon, o presidente derrubado pelo caso Watergate em 1974, fazia diários gravados. Todas as suas conversas no Salão Oval da Casa Branca eram registradas em fita cassete. Diziam que almejava ser reconhecido, quando ouvissem conversas e comentários, como um grande líder mundial.

Nixon definia o chanceler alemão Willy Brandt como um idiota e dizia que os russos adoravam uma adulação. As gravações sobre Watergate foram ouvidas pela Justiça e apressaram sua renúncia.

Agora, a Justiça devassou um smartphone com as anotações do presidente da Odebrecht. Marcelo Odebrecht foi definido em reportagem de O Globo como "o homem que anotava". Registrava planos para escapar da Lava-Jato, conversas, nomes de conhecidos, de jornalistas e comparsas.

A mediocridade dos corruptores se manifesta, em tempos de registros virtuais, também nessas notas utilitárias do empreiteiro.

Nem o Freud mais elementar frequenta as anotações de um sujeito que só pensa em artimanhas e dinheiro.


Moisés Mendes é jornalista de Porto Alegre/RS.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

TRISTE ENCERRAMENTO DAS OLIMPÍADAS DO RIO


Publílio Siro foi feito escravo da República Romana na Síria, no primeiro século antes de Cristo, e enviado, ainda muito jovem, para a Itália. Revelou um talento tão grande para entender e explicar a vida, que seu senhor se tornou seu fã, libertou-o e lhe financiou toda a educação possível em sua época.


Tornou-se escritor, um dos maiores escritores latinos, cujas obras vivem até hoje.


Pois assistindo a cerimônia de encerramento das Olimpíadas do Rio de Janeiro, acabei lembrando dele.


Publílio disse, em uma de suas obras, que “os ouvidos suportam uma injustiça com mais facilidade que os olhos”.


Recordei o rosto faceiro de Lula quando depois de uma árdua disputa com países mais estruturados do que o nosso para grandes eventos, anunciou que as Olimpíadas seriam no Rio de Janeiro.


A dedicação de Lula para que as Olimpíadas fossem aqui foi decisiva para o que, na época, a mídia internacional descreveu como grande vitória política de um país em ascensão e que ocupava novo patamar entre as nações soberanas. 


Era, diziam organizações como o “Times”, uma grande demonstração de prestígio que o Brasil alcançava no mundo.


Lembrei também do jeito simples de Dilma Rousseff ao lado do então ministro dos esportes Aldo Rebelo. anunciando a criação do “Bolsa Atleta”, uma parceria entre o seu Ministério dos Esportes e as forças armadas para preparar melhor o jovem brasileiro que precisasse de apoio para se preparar minimamente para enfrentar os desafios dos jogos, algo inédito nos mais de cem anos de participação do Brasil nas Olimpíadas.


Então, ao perceber toda aquela festa colorida sem a presença e sequer menção aos nomes de Dilma e Lula, achei tudo muito triste e entendi melhor Publílio Siro.


A injustiça quando exposta aos olhos, mesmo que na forma de omissão, dói muito mais profundamente.


Imagino o quanto não terá doido em Dilma e Lula não poder, por força da repressão de um golpe, colher aquilo que plantaram com tanta dedicação.


É fato que todos aqueles capazes de se indignar com essa injustiça devem lutar pelo restabelecimento da verdade.


Afinal é também desse grande escritor latino outra frase dolorosamente verdadeira: “Calando-te sempre, darás lugar à injustiça”.


Prof. Péricles



domingo, 21 de agosto de 2016

LINCHAMENTO


Por Raduan Nassar

O inglês Robert Fisk, em artigo no jornal londrino "The Independent", afirma que, segundo as duras conclusões do relatório Chilcot sobre a invasão do Iraque, o ex-primeiro ministro Tony Blair e seu comparsa George W. Bush deveriam ser julgados por crimes de guerra, a exemplo de Nuremberg, que se ocupou dos remanescentes nazistas.

O poodle Blair se deslocava a Washington para conspirar com seu colega norte-americano a tomada do Iraque, a pretexto de este país ser detentor de armas de destruição em massa, comprovado depois como mentira, mas invasão levada a cabo com a morte de meio milhão de iraquianos.

Antes, durante o mesmo governo Bush, o brutal regime de sanções causou a morte de 1,7 milhão de civis iraquianos, metade crianças, segundo dados da ONU.

Ao consulado que representava um criminoso de guerra, Bush, o então deputado federal Michel Temer (como de resto nomes expressivos do tucanato) fornecia informações sobre o cenário político brasileiro. "Premonitório", Temer acenava com um candidato de seu partido à Presidência, segundo o site WikiLeaks, de Julian Assange.

Não estranhar que o interino Temer, seu cortejo de rabo preso e sabujos afins andem de braços dados com os tucanos, que estariam governando de fato o Brasil ou, uns e outros, fundindo-se em um só corpo, até que o tucanato desfeche contra Temer um novo golpe e nade de braçada com seu projeto de poder -atrelar-se ao neoliberalismo, apesar do atual diagnóstico: segundo publicação da BBC, levantamento da ONG britânica Oxfam, levado ao Fórum Econômico Mundial de Davos, em janeiro, a riqueza acumulada pelo 1% dos mais ricos do mundo equivale aos recursos dos 99% restantes. Segundo o estudo, a tendência de concentração da riqueza vem aumentando desde 2009.

O senador Aloysio Nunes foi às pressas a Washington no dia seguinte à votação do impeachment de Dilma Rousseff na exótica Câmara dos Deputados, como primeiro arranque para entregar o país ao neoliberalismo norte-americano.

Foi secundado por seu comparsa tucano, o ministro das Relações Exteriores, José Serra, também interino-itinerante que, num giro mais amplo, articula "flexibilizar" Mercosul, Brics, Unasul e sabe-se lá mais o quê.

Além de comprometer a soberania brasileira, Serra atira ao lixo o protagonismo que o país tinha conseguido no plano internacional com a diplomacia ativa e altiva do chanceler Celso Amorim, retomando uma política exterior de vira-lata (que me perdoem os cães dessa espécie; reconheço que, na escala animal, estão acima de certos similares humanos).

A propósito, o tucano, com imenso bico devorador, é ave predadora, atacando filhotes indefesos em seus ninhos. Estamos bem providos em nossa fauna: tucano, vira-lata, gato angorá e ratazanas a dar com pau...

Episódio exemplar do mencionado protagonismo alcançado pelo Brasil aconteceu em Berlim (2009), quando, em tribunas lado a lado, a então poderosa Angela Merkel, depois de criticar duramente o programa nuclear do Irã, recebeu a resposta de Lula: os detentores de armas nucleares, ao não desativá-las, não têm autoridade moral para impor condições àquele país. Lula silenciou literalmente a chanceler alemã.

Vale também lembrar o pronunciamento de Lula de quase uma hora em Hamburgo (2009), em linguagem precisa, quando, interrompido várias vezes por aplausos de empresários alemães e brasileiros, foi ovacionado no final.

Que se passe à Lava Jato e a seus méritos, embora supostos, por se conduzirem em mão única, quando não na contramão, o que beira a obsessão. Espera-se que o juiz Serio Moro venha a se ocupar também de certos políticos "limpinhos e cheirosos", apesar da mão grande do inefável ministro do STF Gilmar Mendes.

Por sinal, seu discípulo, o senador Antonio Anastasia, reproduz a mão prestidigitadora do mestre: culpa Dilma e esconde suas exorbitantes pedaladas, quando governador de Minas Gerais.

Traços do perfil de Moro foram esboçados por Luiz Moniz Bandeira, professor universitário, cientista político e historiador, vivendo há anos na Alemanha. Em entrevista ao jornal argentino "Página/12", revela: Moro esteve em duas ocasiões nos EUA, recebendo treinamento. Em uma delas, participou de cursos no Departamento de Estado; em outra, na Universidade Harvard.

Segundo o WikiLeaks, juízes (incluindo Moro), promotores e policiais federais receberam formação em 2009, promovida pela embaixada norte-americana no Rio.

Em 8 de maio, Janio de Freitas, com seu habitual rigor crítico, afirmou nesta Folha que "Lula virou denunciado nas vésperas de uma votação decisiva para o impeachment. Assim como os grampos telefônicos, ilegais, foram divulgados por Moro quando Lula, se ministro, com sua experiência e talento incomum de negociador, talvez destorcesse a crise política e desse um arranjo administrativo".

Lula não assumiu a Casa Civil, foi rechaçado no Supremo Tribunal Federal pelo ministro Gilmar Mendes, um goleirão sem rival na seleção e, no álbum, figurinha assim carimbada por um de seus pares, Joaquim Barbosa, popstar da época e hoje estrela cadente: "Vossa Excelência não está na rua, está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro... Vossa Excelência, quando se dirige a mim, não está falando com seus capangas do Mato Grosso, ministro Gilmar".

Sugiro a eventuais leitores, mas não aos facciosos que, nos aeroportos, torciam o nariz ao ver gente simples que embarcava calçando sandálias Havaianas, que acessem o site Instituto Lula - o Brasil da Mudança.

Poderão dar conta de espantosas e incontestes realizações. Limito-me a destacar o programa Luz para Todos, que tirou mais de 15 milhões de brasileiros da escuridão, sobretudo nos casebres do sertão nordestino e da região amazônica. E sugiro o amparo do adágio popular: pior cego é aquele que não quer ver.

A não esquecer: Lula abriu as portas do Planalto aos catadores de matérias recicláveis, profissionalizando-os, sancionou a Lei Maria da Penha, fundamental à proteção das mulheres, e o Estatuto da Igualdade Racial, que tem como objetivo políticas públicas que promovam igualdade de oportunidades e combate à discriminação.

Que o PT tenha cometido erros, alguns até graves (quem não os comete?), mas menos que Fernando Henrique Cardoso, que recorria ao "Engavetador Geral da República", à privataria e a muitos outros expedientes, como a aventada compra de votos para sua reeleição.

A corrupção, uma enfermidade mundial, decorre no Brasil do sistema político, atingindo a quase totalidade dos partidos. Contudo, Lula propiciou, como nunca antes, o desempenho livre dos órgãos de investigação, como Ministério Público e Polícia Federal, ao contrário do que faziam governos anteriores que controlavam essas instituições.

A registrar ainda, por importante: as gestões petistas nunca falaram em "flexibilizar" a CLT, a Previdência, a escola pública, o SUS, as estatais, o pré-sal inclusive e sabe-se lá mais o quê, propostas engatilhadas pelos interinos (algumas levianamente já disparadas), a causar prejuízo incalculável ao Brasil e aos trabalhadores.

Sem vínculo com qualquer partido político, assisto com tristeza a todo o artificioso esquema de linchamento a que Lula vem sendo exposto, depois de ter conduzido o mais amplo processo de inclusão social que o Brasil conheceu em toda a sua história.


RADUAN NASSAR, 80, é autor dos livros "Lavoura Arcaica" (1975), "Um Copo de Cólera" (1978) e "Menina a Caminho e Outros Textos" (1997). Recebeu neste ano o Prêmio Camões, principal troféu literário da língua portuguesa



quarta-feira, 17 de agosto de 2016

MENSAGEM DE DILMA ROUSSEFF


Brasília, 16 de agosto de 2016


Dirijo-me à população brasileira e às Senhoras Senadoras e aos Senhores Senadores para manifestar mais uma vez meu compromisso com a democracia e com as medidas necessárias à superação do impasse político que tantos prejuízos já causou ao país.

Meu retorno à Presidência, por decisão do Senado Federal, significará a afirmação do Estado Democrático de Direito e poderá contribuir decisivamente para o surgimento de uma nova e promissora realidade política.

Minha responsabilidade é grande. Na jornada para me defender do impeachment me aproximei mais do povo, tive oportunidade de ouvir seu reconhecimento, de receber seu carinho. Ouvi também críticas duras ao meu governo, a erros que foram cometidos e a medidas e políticas que não foram adotadas. Acolho essas críticas com humildade e determinação para que possamos construir um novo caminho.

Precisamos fortalecer a democracia em nosso País e, para isto, será necessário que o Senado encerre o processo de impeachment em curso, reconhecendo, diante das provas irrefutáveis, que não houve crime de responsabilidade. Que eu sou inocente.

No presidencialismo previsto em nossa Constituição, não basta a desconfiança política para afastar um presidente. Há que se configurar crime de responsabilidade. E está claro que não houve tal crime.

Não é legítimo, como querem os meus acusadores, afastar o chefe de Estado e de governo pelo "conjunto da obra". Quem afasta o presidente pelo "conjunto da obra" é o povo e, só o povo, nas eleições.

Por isso, afirmamos que, se consumado o impeachment sem crime de responsabilidade, teríamos um golpe de estado.

O colégio eleitoral de 110 milhões de eleitores seria substituído, sem a devida sustentação constitucional, por um colégio eleitoral de 81 senadores. Seria um inequívoco golpe seguido de eleição indireta.

Ao invés disso, entendo que a solução para as crises política e econômica que enfrentamos passa pelo voto popular em eleições diretas. A democracia é o único caminho para a construção de um Pacto pela Unidade Nacional, o Desenvolvimento e a Justiça Social. É o único caminho para sairmos da crise.

Por isso, a importância de assumirmos um claro compromisso com o Plebiscito e pela Reforma Política.

Todos sabemos que há um impasse gerado pelo esgotamento do sistema político, seja pelo número excessivo de partidos, seja pelas práticas políticas questionáveis, a exigir uma profunda transformação nas regras vigentes.

Estou convencida da necessidade e darei meu apoio irrestrito à convocação de um Plebiscito, com o objetivo de consultar a população sobre a realização antecipada de eleições, bem como sobre a reforma política e eleitoral.

A restauração plena da democracia requer que a população decida qual é o melhor caminho para ampliar a governabilidade e aperfeiçoar o sistema político eleitoral brasileiro.

Devemos construir, para tanto, um amplo Pacto Nacional, baseado em eleições livres e diretas, que envolva todos os cidadãos e cidadãs brasileiros. Um Pacto que fortaleça os valores do Estado Democrático de Direito, a soberania nacional, o desenvolvimento econômico e as conquistas sociais.

Esse Pacto pela Unidade Nacional, o Desenvolvimento e a Justiça Social permitirá a pacificação do País. O desarmamento dos espíritos e o arrefecimento das paixões devem sobrepor-se a todo e qualquer sentimento de desunião.

A transição para esse novo momento democrático exige que seja aberto um amplo diálogo entre todas as forças vivas da Nação Brasileira com a clara consciência de que o que nos une é o Brasil.

Diálogo com o Congresso Nacional, para que, conjunta e responsavelmente, busquemos as melhores soluções para os problemas enfrentados pelo país.

Diálogo com a sociedade e os movimentos sociais, para que as demandas de nossa população sejam plenamente respondidas por políticas consistentes e eficazes. As forças produtivas, empresários e trabalhadores, devem participar de forma ativa na construção de propostas para a retomada do crescimento e para a elevação da competitividade de nossa economia.

Reafirmo meu compromisso com o respeito integral à Constituição Cidadã de 1988, com destaque aos direitos e garantias individuais e coletivos que nela estão estabelecidos. Nosso lema persistirá sendo "nenhum direito a menos".

As políticas sociais que transformaram a vida de nossa população, assegurando oportunidades para todas as pessoas e valorizando a igualdade e a diversidade deverão ser mantidas e renovadas. A riqueza e a força de nossa cultura devem ser valorizadas como elemento fundador de nossa nacionalidade.

Gerar mais e melhores empregos, fortalecer a saúde pública, ampliar o acesso e elevar a qualidade da educação, assegurar o direito à moradia e expandir a mobilidade urbana são investimentos prioritários para o Brasil.

Todas as variáveis da economia e os instrumentos da política precisam ser canalizados para o País voltar a crescer e gerar empregos.

Isso é necessário porque, desde o início do meu segundo mandato, medidas, ações e reformas necessárias para o país enfrentar a grave crise econômica foram bloqueadas e as chamadas pautas-bomba foram impostas, sob a lógica irresponsável do "quanto pior, melhor".

Houve um esforço obsessivo para desgastar o governo, pouco importando os resultados danosos impostos à população. Podemos superar esse momento e, juntos, buscar o crescimento econômico e a estabilidade, o fortalecimento da soberania nacional e a defesa do pré-sal e de nossas riquezas naturais e minerárias.

É fundamental a continuidade da luta contra a corrupção. Este é um compromisso inegociável. Não aceitaremos qualquer pacto em favor da impunidade daqueles que, comprovadamente, e após o exercício pleno do contraditório e da ampla defesa, tenham praticado ilícitos ou atos de improbidade.

Povo brasileiro, Senadoras e Senadores,

O Brasil vive um dos mais dramáticos momentos de sua história. Um momento que requer coragem e clareza de propósitos de todos nós. Um momento que não tolera omissões, enganos, ou falta de compromisso com o país.

Não devemos permitir que uma eventual ruptura da ordem democrática baseada no impeachment sem crime de responsabilidade fragilize nossa democracia, com o sacrifício dos direitos assegurados na Constituição de 1988. Unamos nossas forças e propósitos na defesa da democracia, o lado certo da História.

Tenho orgulho de ser a primeira mulher eleita presidenta do Brasil. Tenho orgulho de dizer que, nestes anos, exerci meu mandato de forma digna e honesta. Honrei os votos que recebi. Em nome desses votos e em nome de todo o povo do meu País, vou lutar com todos os instrumentos legais de que disponho para assegurar a democracia no Brasil.

A essa altura todos sabem que não cometi crime de responsabilidade, que não há razão legal para esse processo de impeachment, pois não há crime. Os atos que pratiquei foram atos legais, atos necessários, atos de governo. Atos idênticos foram executados pelos presidentes que me antecederam. Não era crime na época deles, e também não é crime agora.

Jamais se encontrará na minha vida registro de desonestidade, covardia ou traição. Ao contrário dos que deram início a este processo injusto e ilegal, não tenho contas secretas no exterior, nunca desviei um único centavo do patrimônio público para meu enriquecimento pessoal ou de terceiros e não recebi propina de ninguém.

Esse processo de impeachment é frágil, juridicamente inconsistente, um processo injusto, desencadeado contra uma pessoa honesta e inocente. O que peço às senadoras e aos senadores é que não se faça a injustiça de me condenar por um crime que não cometi. Não existe injustiça mais devastadora do que condenar um inocente.

A vida me ensinou o sentido mais profundo da esperança. Resisti ao cárcere e à tortura. Gostaria de não ter que resistir à fraude e à mais infame injustiça.

Minha esperança existe porque é também a esperança democrática do povo brasileiro, que me elegeu duas vezes Presidenta. Quem deve decidir o futuro do País é o nosso povo.

A democracia há de vencer.



Dilma Rousseff



terça-feira, 16 de agosto de 2016

O HOMEM QUE QUERIA MATAR GETÚLIO VARGAS



Por Apóllo Natali


Getúlio Dornelles Vargas chamou o cara e disse: vai ter uma revolução e eu quero que você fabrique bombas para mim. O homem que era especialista em fazer bombas, respondeu: eu vou fazer só uma bomba e é para te matar.

Getúlio Dornelles Vargas então arremessou o interlocutor ao solo com um empurrão e ordenou: levem esse sujeito para ser torturado. Concluída a tortura, o homem da bomba foi solto e se arrastou pelas ruas do Rio de Janeiro com o corpo em petição de miséria, tendo ainda debaixo das unhas os estiletes que os torturadores não quiseram se dar ao trabalho de tirar.

Bem antes disso, o tal do bombardeiro (cujo ofício, como se nota, é mesmo lidar com bombas) já havia sido preso e torturado a mando de Getúlio Dornelles Vargas, descoberto que foi fabricando bombas em sua própria residência.

Seu segredo veio à tona após uma explosão em sua casa. Sua mulher e a filha de nove anos sofreram sérias queimaduras nas costas. Foram levadas presas para um convento por ordem de Getúlio Dornelles Vargas. Lá eram arrastadas pelos cabelos e xingadas de comunistazinhas pelas freiras.

O cara que fabricava bombas era teimoso e colocou uma de sua autoria no vagão de um trem onde viajaria Getúlio.

De repente apareceu gritando um velho que, pela aparência desgrenhada, ninguém daria um centavo por ele.

Falou resfolegando para o bombardeiro e seus amigos agachados a uma certa distância do trem: alguém do Partidão [o Partido Comunista] nos denunciou. Precisamos tirar essa bomba daí logo para que ninguém nos identifique.

Era uma bomba à base de nitroglicerina. Pode explodir com uma respiração mais forte, um chacoalho ou mudança de temperatura. Olha o perigo de explosão fora de hora na fornalha Rio 40 graus (que era aquele vagão) antes de Getúlio Vargas entrar nele!

Outros amigos do Partidão chamados às pressas para tirar a bomba demoravam muito para chegar. Estavam aflitos os três ou quatro bombardeiros escondidos com as mãos apertando os ouvidos. Ufa, a bomba foi retirada e Getúlio Dornelles Vargas só morreu em 1954, por conta própria.

O bombardeiro de Getúlio Dornelles Vargas se chamava Francisco Romero.

O neto dele, já antigo trabalhador na construção civil, mora num bairro vizinho ao meu, em São Paulo. Ele me contou esta história às 11h30 do dia 16 de janeiro de 2016.

Sei que os doutos historiadores exigirão depoimentos de outrem e/ou quaisquer registros do passado, coincidentes em algum (uns) ponto (s) com estas lembranças, para se decidirem a encaixar o pequenino personagem Francisco Romeiro num cantinho da biografia de Getúlio Dornelles Vargas; lamentavelmente inexistem, ou nem o neto os tem, nem eu os encontrei.

Pensei numa foto do avô e família, esta sim disponível, mas logo aquilatei que não seria suficiente.

O seu falar fluía tranquilo e pausado. Ouvindo-o, não duvidei em momento algum da veracidade do que ele me narrava. E você, caro leitor ou prezada leitora, o que concluiu deste relato?


Apóllo Natali foi o primeiro redator da antiga Agência Estado, foi redator da Rádio Eldorado, do Estadão e do antigo Jornal da Tarde. Escreve atualmete para diversos sites e blogs de notícia, como o Observatório da Imprensa.


sábado, 13 de agosto de 2016

AS RAZÕES DA ESQUERDA


Talvez o mundo esteja racional demais e sensível de menos.


Nada é mais desesperador para alguém que está deprimido, por exemplo, do que a lógica de quem não está e não enxerga os motivos ocultos de quem sofre.


Toneladas de lógica podem significar menos que algumas gramas de emoção.


Verdades as vezes plenamente reconhecidas podem ser perfeitamente evitáveis.


Um pouco de lúdico e subjetivo pode preencher vazios existenciais indefiníveis.


Os partidos de esquerda, por exemplo.


Às vezes são tão preparados para ocupar o poder que acabam fazendo acordos espúrios e esquecendo das próprias raízes.


O militante de esquerda é um ser intelectualizado. Invariavelmente já leu muitas obras que a maioria das pessoas não leem, já fiz comparações políticas necessárias que muitos nunca ousaram pensar.


O militante de esquerda tem sua utopia e acredita estar lutando por ela militando nesse ou naquele partido de esquerda.


Entretanto poucas coisas são mais frias do que uma reunião dessa militância.


Muito intelecto, pouca emoção.


Paradoxalmente o lúdico de cada utopia do militante iniciante vai dando espaço à uma lógica que oprime e é capaz de afastar cada vez mais o militante e a utopia que o levou ao partido.


Algo como o sonho fugindo diante de tanta estratégia lógica e tantos argumentos e hierarquias.


Existem rumores de militantes de grupos armados abandonados pelas direções de suas organizações à própria sorte durante a “Guerra Suja” contra a ditadura militar e isso é plenamente possível, já que essas agremiações são eminentemente lógicas.


A organização de esquerda possuí razão de mais e coração de menos.


E dessa forma torna-se arrogantemente certa em suas convicções intelectuais e talvez essa seja a razão de estarem sempre tão distantes do coração dos ilustrados que julga defender.


Na crise atual isso é, mais uma vez, perceptível.


Você não acha que a reação ao golpe está apática?


Temos, nós da esquerda, um exército de possibilidades de luta.


Onde estão?


Onde estão as lideranças mais populares do PT? Por onde anda Lula?


É provável que, cobertos de lógica eleitoral, a direção do PT já tenha feito uma espécie de combinação, não escrita, mas firmada nas atitudes, com os golpistas.


Uma combinação que garanta as eleições de 2018, que contaria com a possibilidade de vitória e volta de Lula.


Isso seria cruel e injusto com Dilma.


Mas, a esquerda brasileira possuí razão de mais e coração de menos, lembra?



Prof. Péricles





quinta-feira, 11 de agosto de 2016

MOMENTO ÚNICO


Por Luis Fernando Veríssimo


Quem quer ficar sozinho num mundo que não domina e mal compreende, sem o apoio e o consolo de uma teologia, qualquer teologia?

Gustave Flaubert escreveu, numa carta para um amigo: “Quando os deuses tinham deixado de existir, e o Cristo ainda não viera, houve um momento único na História, entre Cícero e Marco Aurélio, em que o homem ficou sozinho”.

As divindades pagãs nunca deixaram de existir, mesmo com o triunfo do cristianismo, e a Roma evocada por Flaubert era apenas Roma, não era o mundo. Mas, no breve momento de solidão flagrado pelo escritor, o homem ocidental se viu livre da metafísica — e não gostou, claro. 

Quem quer ficar sozinho num mundo que não domina e mal compreende, sem o apoio e o consolo de uma teologia, qualquer teologia? O monoteísmo paternal substituiu as divindades convivais da antiguidade, em pouco tempo Constantino adotaria o cristianismo como a religião do império e o homem perdeu o seu momento único, a oportunidade de se emancipar dos deuses.

A ciência, pelo menos até Einstein, nunca pretendeu desafiar a metafísica dominante, mesmo quando desmentia seus dogmas. 

Copérnico cumpria seus deveres de cônego da Catedral de Frauenburg enquanto bolava a heresia que destruiria mil anos de ensinamento da Igreja, e seu tratado revolucionário sobre o universo heliocêntrico foi dedicado, sem nenhuma ironia que se saiba, ao Papa Paulo III.

Galileu também foi inocentemente a Roma demonstrar na corte papal o telescópio com o qual confirmara a teoria explosiva de Copérnico, talvez o exemplo histórico mais acabado de falar em corda em casa de enforcado. Quando foi julgado pela Inquisição, Galileu concordou em renunciar à ideia maluca de que a Terra se movia em torno do Sol, para ficar vivo, e a frase famosa que teria dito baixinho — “E pur si muove” — só foi acrescentada ao relato do julgamento um século depois, quando provavelmente também se originou a frase “Se não é verdade, é um bom achado”.

Quando o astrônomo Joseph Halley, o do cometa, entusiasmado com a recém-publicada “Principia”, de Isaac Newton, quis dar uma ideia da importância da teoria newtoniana da gravidade e do movimento dos astros, disse que, com ela “fomos admitidos aos banquetes dos deuses” pois, até então, a ciência só especulara sobre a geometria celestial — algo como o Woody Allen dizendo que fazer cinema sério, ao contrário de comédias, era sentar-se na mesa dos adultos.

Com Newton, passamos a conversar seriamente com os deuses. Halley preferiu “deuses” a Deus, evocando o tempo pré-cristão em que as divindades andavam entre os homens e podiam até ser seus comensais. O trabalho de Newton fazia parte da “filosofia natural”, o pseudônimo com que, na Europa do século XVII, a ciência especulativa convivia com os dogmas religiosos.

Os banquetes com os deuses não eram exatamente atos de rebeldia contra a teologia, mas uma maneira de trazer a metafísica de volta a um plano humano.

Mas o momento único da emancipação possível já passara.


Luis Fernando Veríssimo, escritor.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

A VAIA A TEMER


Por Arruda Bastos

O Ceará é conhecido pela sua molecagem e seu espírito bem-humorado. Somos o maior celeiro de grandes humoristas no Brasil: Chico Anysio, Renato Aragão, Tom Cavalcante e muitos outros. 

Como reza a lenda, aqui vaiamos até o sol. 

Na década de 40, vivíamos uma grande seca, mas, em 30 de janeiro de 1942 o céu de Fortaleza amanheceu completamente coberto por nuvens negras. A população saiu para comemorar, porém, logo a chuva cessou. Quando o sol apareceu entre as nuvens, um cidadão que estava na Praça do Ferreira, no centro da cidade, não hesitou: voltou-se para o astro rei e começou a vaiar. A atitude contagiou dezenas de pessoas que também vaiaram o sol. Tudo fruto da nossa irreverência.

No Maracanã, na abertura dos jogos olímpicos, foi diferente. Embora com alguns abastados cearenses na plateia, a vaia estrepitosa sofrida por Temer na sua mísera fala de poucos segundos foi marcante. A vaia veio da esmagadora maioria dos presentes e revela a total falta de apoio do governo provisório. A pesquisa do Data Folha, mesmo com divulgação maquiada, já demonstrava isso. A nossa população não deseja o governo Temer, mas sim uma nova eleição.

Nas arquibancadas não tínhamos dependentes do Bolsa Família, moradores do Minha Casa Minha Vida ou representantes de outras categorias que se beneficiaram dos programas sociais de Lula e Dilma nos últimos anos. Muito pelo contrário, a grande maioria de espectadores era composta de membros da nossa classe média e da elite brasileira, defensora do afastamento da presidente Dilma.

O mais preocupante para o interino Temer é que a vaia foi estridente e de todos os setores do Maracanã. Por mais que a mídia golpista, capitaneada pela Globo, tente negar e até, como está sendo denunciado pela imprensa livre, mascarar com manipulação de áudios na transmissão, ficou impossível de colocar panos mornos na sua impopularidade e na constatação de que ele, para o povo, é um traidor, um ser desprezível, um mau caráter, o capitão do golpe em andamento no Brasil e não tem estofo e preparo moral para comandar nossa nação.

A covardia da noite, contrastando com o espírito Olímpico, ficou por conta de Michel Temer. Ele e seus ministros alardeavam antes do evento que estavam todos preparados para as vaias. Pois bem, pela primeira vez em uma Olimpíada o presidente do país-sede não foi anunciado na cerimônia de abertura. Seu nome não foi sequer citado em nenhum momento e o motivo foi justamente para evitar as vaias no início e durante a festa. 

Os órgãos de comunicação já confirmam que o pedido para esconder dos olhos e ouvidos de todos a figura malfazeja de Temer veio do Palácio do Planalto.

Voltando a absurda manipulação da grande mídia golpista, observamos facilmente, analisando os áudios da fala de Temer, que durante a sonora vaia ouviram-se só poucos aplausos e oriundos do camarote onde o presidente interino estava. A fraude foi ecoar de forma inflacionada o som das autoridades e reduzir o das arquibancadas. Golpistas até na hora de transmitir uma solenidade importante como a abertura dos jogos Olímpicos. A que ponto chegamos?!

Os organizadores da Olimpíada tentaram proteger o ilegítimo presidente de todas as maneiras. 

Os telões e a transmissão de televisão evitaram ao máximo as imagens do constrangido personagem, que mais parecia a Belinha, minha cadela, com rabo entre as pernas depois que é flagrada em alguma travessura. 

Até o presidente do Comitê Olímpico Internacional, Thomas Bach, no seu discurso, agradeceu genericamente às “autoridades brasileiras”, e em nenhum momento citou o seu nome. É a confirmação do total descrédito da nossa atual elite dominante.

Como comentei no meu artigo, A atual política do pão e circo é praticada pelo governo Temer em parceria com a mídia golpista e feita para ludibriar o nosso povo. Parece que, pelo menos na abertura da Olimpíada Rio 2016, não funcionou. 

Vamos torcer para que os jogos sejam um sucesso e que as armações sejam desmascaradas prontamente como foi nesta oportunidade.



Arruda Bastos é médico, professor universitário, ex-Secretário da Saúde do Estado do Ceará e um dos coordenadores do Movimento Médicos pela Democracia.



domingo, 7 de agosto de 2016

PRESIDENTES, VICES E A DANÇA DAS CADEIRAS


Na história brasileira já tivemos roteiros surpreendentes no que se refere aos mandatos de presidentes e atuações de seus vices.

Com relação aos presidentes a dança das cadeiras teve de tudo.

Duas Renúncias: Deodoro da Fonseca, em 1891 e Jânio Quadros em 1961.

Dois presidentes, um eleito, Afonso Pena (1909) e outro imposto pela Ditadura Militar, Artur da Costa e Silva (1969) morreram no exercício do cargo.

Outro se suicidou em pleno exercício do mandato: Getúlio Vargas em 1954.

Dois eleitos morreram antes de assumir: Rodrigues Alves, 1918 e Tancredo Neves em 1985.

Um presidente que assumiu o cargo após uma revolução vitoriosa por ele liderada: Getúlio Vargas e outro que, apesar de eleito, foi impedido de assumir pela mesma revolução vitoriosa: Júlio Prestes, em 1930.

Incrivelmente, tivemos um presidente não eleito, mas designado nominalmente pela Constituição: ele de novo, Vargas, em 1934.

E até um presidente que deu golpe no próprio regime em que era presidente para se tornar ditador: adivinha... Getúlio Vargas, em 1937. Ufa.

Um presidente foi derrubado do poder por golpe militar: João Goulart em 1964.

Já Fernando Color de Melo foi retirado do poder por força de um impeachment: em 1992.

Três presidentes foram reeleitos depois de alterada a Constituição: Fernando Henrique Cardoso em 1998, Luiz Inácio “Lula” da Silva em 2006 e Dilma Rousseff em 2014.

Nossa história dos vices também já teve muita emoção.

Um Vice-presidente provisório assumiu no lugar do presidente que renunciou, mas, em vez de apenas completar o mandato ampliou seu próprio período de governo: Floriano Peixoto 1891 a 1894.

Dois vices que assumiram devido a morte do titular: Nilo Peçanha, em 1909 e José Sarney em 1985.

Um vice que não quis assumir de jeito nenhum após a morte do titular e não assumiu mesmo: Delfim Moreira, em 1918.

Mas já teve outro que enfrentou um golpe armado para assumir: Jango, em 1961.

Um vice em exercício do cargo vago pela morte do titular que simulou estar doente para não assumir, Café Filho em 1955 e o outro que foi derrubado mesmo sendo interino: Carlos Luz, também em 1955.

Um vice que deveria assumir com o licenciamento do “presidente” apenas para manter as aparências, mas, que, mesmo assim, foi impedido por força da ditadura: Pedro Aleixo, em 1968.

E um vice que assumiu no lugar do presidente pós-impeachment: Itamar Franco, em 1992.

Apesar de tantos fatos surpreendentes, ainda conseguimos ineditismos em nossa história.

Atualmente, por exemplo.

Pela primeira vez somos governados por um vice descaradamente conspirador e golpista que por trás de um silêncio mentirosamente humilde planejou junto com as forças mais reacionárias do país um golpe contra a titular.

Somos ricos em surpreender o mundo e a nós mesmos.

Nossa história as vezes confunde humor com terror e drama com dramalhão e nesses argumentos sempre quem perde é o povo, particularmente, suaa parte mais pobre e abandonada.

Lamentavelmente a surpresa, às vezes, é perversa e fascista e a gente não sabe se chora ou se ri.



Prof. Péricles





sexta-feira, 5 de agosto de 2016

SANGUE, PARA ELES, SÃO MEDALHAS


Por Celso Lungaretti 


A condescendência com a bestialidade dos agentes do terrorismo de estado, paradoxalmente, inexiste em países que nem sequer foram por ela atingidos: agora é dos Estados Unidos que recebemos uma lição de como a Justiça de uma nação civilizada deve tratar bestas-feras responsáveis por crimes contra a humanidade.

O ex-militar chileno Pedro Paulo Barrientos Nuñez, que para lá emigrou em 1990 e acabou adquirindo a cidadania estadunidense, foi condenado por um tribunal da Florida a indenizar em US$ 28 milhões a família do cantor Victor Jara, por tê-lo assassinado no curso do golpe de Estado desfechado por Augusto Pinochet em setembro de 1973 (cujo saldo foi o assassinato ou desaparecimento de 3.200 opositores políticos, além de dezenas de milhares de cidadãos torturados).

A ação foi aberta pela viúva Joan, pela filha Amanda e pela enteada Manuela, com base na Lei de Proteção à Vítima de Tortura dos EUA, que permite ações civis contra torturadores.

Já no Brasil, o máximo que se obteve foi a declaração de que Carlos Alberto Brilhante Ustra havia mesmo sido um torturador, sem que isto implicasse pagamento nenhum a suas vítimas.

Segundo o serviço noticioso português RTP, foi decisivo o testemunho de um antigo subalterno de Barrientos, o soldado José Navarrete, que relatou: “Ele se vangloriara de ter matado Víctor Jara. Costumava mostrar a pistola e dizer: ‘Matei Víctor Jara com isto’.

Também depuseram dois antigos prisioneiros, que viram Jara ser reconhecido pelos militares, separado dos outros e violentamente espancado.

Um deles, Boris Navia, contou que Jara foi exibido como um troféu a outros oficiais, tendo um deles lhe esmagado a mão e partido o braço, enquanto dizia: “Nunca mais vais poder tocar guitarra”.

Finalmente, mataram-no a tiros. Seu corpo tinha 44 balas cravadas ao ser encontrado.

Durante os três dias em que esteve preso num estádio de futebol antes de ser executado, Jara escreveu um último poema, cuja versão para o português (efetuada pelo site Adital) reproduzimos:


“O SANGUE, PARA ELES, SÃO MEDALHAS”

“Somos cinco mil
nesta pequena parte da cidade.
Somos cinco mil.

Quantos seremos no total,
nas cidades e em todo o país?
Somente aqui, dez mil mãos que semeiam
e fazem andar as fábricas.

Quanta humanidade
com fome, frio, pânico, dor,
pressão moral, terror e loucura!

Seis de nós se perderam
no espaço das estrelas.

Um morto, um espancado como jamais imaginei
que se pudesse espancar um ser humano.

Os outros quatro quiseram livrar-se de todos os temores,
um saltando no vazio,
outro batendo a cabeça contra o muro,
mas todos com o olhar fixo da morte.

Que espanto causa o rosto do fascismo!

Colocam em prática seus planos com precisão arteira,
sem que nada lhes importe.

O sangue, para eles, são medalhas.
A matança é ato de heroísmo.
É este o mundo que criaste, meu Deus?

Para isto os teus sete dias de assombro e trabalho?!
Nestas quatro muralhas só existe um número que não cresce,
que lentamente quererá mais morte.

Mas prontamente me golpeia a consciência
e vejo esta maré sem pulsar,
mas com o pulsar das máquinas
e os militares mostrando seu rosto de parteira,
cheio de doçura.

Quantos somos em toda a pátria?
O sangue do companheiro Presidente
golpeia mais forte que bombas e metralhas.
Assim golpeará nosso punho novamente.

Como me sai mal o canto
quando tenho que cantar o espanto!
Espanto como o que vivo
como o que morro, espanto.

De ver-me entre tantos e tantos
momentos do infinito
em que o silêncio e o grito
são as metas deste canto.

O que vejo nunca vi,
o que tenho sentido e o que sinto
fará brotar o momento…”



Para ler mais sobre Victor Jara leia os textos desse Blog: “Victor Jara, A Voz Calada do Povo” de outubro de 2014 e “Golpe no Chile 40 Anos” de setembro de 2013.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

O BRASIL É CATÓLICO?


Por Itamar Melo


Pedro Álvares Cabral ordenou que se erguesse um altar na praia da Coroa Vermelha, convocou seus capitães a passar das caravelas para batéis e desembarcou na faixa de areia. Era um domingo, dia do Senhor. Sob a bandeira de Cristo, cercado pela exuberante vegetação tropical, o frade franciscano Henrique Soares de Coimbra pregou o Evangelho, falou da cruz e da nova terra na qual ela acabara de chegar e entoou missa – a primeira celebrada nesta parte do mundo. Era 26 de abril de 1500. O Brasil nascia ali, sob a égide da Igreja Católica.

Durante a maior parte dos cinco séculos seguintes, o país e a religião permaneceriam indissociáveis. Como a licença papal concedida aos portugueses para explorar o Novo Mundo estava condicionada à expansão da fé, colonização e evangelização confundiam-se. Com o conquistador, vinha o padre.

O amálgama entre Brasil e catolicismo foi tal que, até a proclamação da República, em 1889, Estado e Igreja mantiveram-se fundidos no regime conhecido como padroado.

O país se fez ao redor de igrejas construídas na praça central de cada cidade ou vilarejo, aprendeu as primeiras letras em escolas geridas por padres e freiras, formou seu imaginário escutando as histórias dos personagens do Antigo e do Novo Testamento, construiu toda uma cultura baseada no alicerce dos valores católicos.

Em 1940, meio século após a separação entre Igreja e Estado, 95% dos brasileiros se declaravam seguidores do Papa.

Agora, passados 516 anos do primeiro domingo de missa, esse país não existe mais. A maior nação católica do mundo já não é tão católica assim. 

Pela primeira vez na história, talvez já nem se possa mais dizer que o Brasil é um país católico. Essa é uma transformação significativa, que vem se anunciando nas estatísticas há mais de 40 anos. Durante esse período, a proporção de membros da Igreja na população despenca cerca de 10 pontos percentuais a cada década.

Em 1980, eles ainda eram 89%. Passaram rapidamente a 83,3% (1991), 73,6% (2000) e 64,6% (2010). O próximo Censo ocorre apenas daqui a quatro anos, mas especialistas acreditam que ele vai flagrar a continuidade dessa tendência – a dúvida é apenas quanto ao tamanho do tombo.

Algumas pesquisas recentes sugerem que pode ser robusto e que a maioria católica possa estar ameaçada. O Datafolha, que mede a religiosidade do brasileiro desde 1994, detectou apenas 57% de católicos em 2013 – no levantamento anterior, em 2010, o índice foi de 63%, quase igual ao do Censo.

Na avaliação do Pew Research Center, uma instituição norte-americana, o declínio se confirma, mas em ritmo menos alucinante: em 2014, 81% dos brasileiros diziam ter sido criados como católicos, mas só 61% afirmavam ser católicos.

As pesquisas que chamam mais atenção e que permitem prever um Brasil não-católico são aquelas centradas nas faixas etárias mais baixas – grupos que serão os brasileiros de amanhã e sob cuja orientação vai ser moldada a religiosidade das próximas gerações. 

Para a maior parte desses jovens, a igreja apostólica romana dos seus pais e avós significa pouco. Levantamento feito três anos atrás pelo Instituto Data Popular apontou que só 44% dos brasileiros de 16 a 24 anos definiam-se como católicos.

Em alguns estratos, há indícios de que os crentes sejam ainda mais minoritários. 

Em 2015, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) realizou uma pesquisa, em todas as unidades da federação, com pessoas de 18 a 34 anos. A amostra não refletia o perfil exato do brasileiro, privilegiando pessoas de classes B e C e com instrução acima da média. Mesmo com esse reparo, o dado espanta: só 34,3% disseram seguir o catolicismo.

O bispo auxiliar de Porto Alegre Leomar Antônio Brustolin, que coordena a pós-graduação em Teologia da PUCRS, reconhece: o Brasil já não pode mais ser definido como um país católico. Ele avalia o encolhimento do rebanho como parte de algo mais amplo, um enfraquecimento dos valores cristãos.

Na arquidiocese de Porto Alegre, onde Brustolin atua, dados sobre a administração dos sacramentos oferecem um vislumbre da "descatolização" em curso. Segundo a edição de 2015 do guia do arcebispado, a quantidade de batizados, primeiras comunhões, crismas e casamentos nos 29 municípios da jurisdição é pouco expressiva e, além disso, recuou de forma acelerada.

Em 2008, foram batizadas 26,8 mil crianças. Mas o número diminui ano após ano, até chegar à marca dos 20,8 mil em 2013.

Até uma ou duas gerações atrás, ser brasileiro significava, em larga medida, crescer em um lar decorado com imagens de Cristo e dos santos, ter uma avó ou tia devota que exigia a presença semanal na missa, absorver uma série de costumes, superstições e narrativas de origem católica e ter nos sacramentos uma espécie de formação obrigatória.

O fenômeno mencionado por Chiarello é algo já documentado em uma série de pesquisas. Elas mostram que a quantidade minguante de brasileiros que se define como católica expressa opiniões e crenças frontalmente contrárias à doutrina. 

Em 2011, como parte de seu mestrado em Teologia, Edson Frizzo entrevistou 1.104 alunos de Humanismo e Cultura Religiosa, disciplina obrigatória nos cursos de graduação da PUCRS. A maior fatia (61,2%) definia-se como católica, mas a crença era de fachada.

Apenas 19,2% acreditavam na ressurreição, menos do que os crentes na encarnação (44%). No que dizia respeito a valores, revelou-se um festival de anticatolicismo: os estudantes eram a favor do divórcio (90,9%), da eutanásia (64,1%), do aborto (56,6%), da pena de morte (50,7%), do controle artificial de natalidade (72%), do sexo antes do casamento (92,9%) e da união homossexual (52,5%).

O segmento evangélico foi o que mais cresceu no país no passado recente. Em 1991, abrangia 9% da população. Em 2010, 22,2%.

A maior parte desses adeptos saiu das hostes papistas. Segundo dados do Pew Research Center, 54% dos protestantes brasileiros foram originalmente criados como católicos.

A transformação cultural também abriu caminho para a expansão dos que se declaram ateus – um tipo de posicionamento que até pouco tempo atrás era tabu no Brasil. 

Em 2008, o engenheiro civil Daniel Sottomaior, curitibano radicado em São Paulo, descobriu comunidades de ateus na internet e fundou a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), que combate a discriminação e o preconceito contra quem não tem fé.

No final de 2010, a agremiação tinha 1,7 mil sócios. Passados pouco mais de cinco anos, tem 10 vezes mais: 17,4 mil. O Rio Grande do Sul se destaca. Apesar de responder por 5,5% da população brasileira, abriga 8,4% dos filiados à Atea.

A página da entidade no Facebook acumula 485 mil fãs.




Itamar Melo é jornalista de Porto Alegre/RS

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

EM DEFESA DO GERÚNDIO E DA "IDÉIA"


O professor de história escreve no quadro quando é interrompido por uma aluna.

- Professor, a palavra ideia não tem mais acento.

- Hã?

- A palavra ideia não é mais acentuada.

- Como assim? Quer dizer que eu não tenho mais idéia e sim idêia?

- Não professor, continua ideia mas agora sem acento segundo as novas normas gramaticais.

- Mas, espera um pouco... a idéia é minha ou é tua? A minha idéia tem acento, assim ó, bem destacada, um acento em diagonal, bem forte e acima do “e” e sempre terá acento enquanto ela for minha.

- Mas...

- Não tem mas. Na verdade, esse é o motivo de toda confusão do mundo, acabo de descobrir...

- ???

- Claro, sou de uma geração que tinha idéias, e até ideais, que não é a mesma coisa, sabia? Nossas idéias eram assim mesmo, abertas, chamavam a atenção... hoje as idêias são fechadas, acanhadas, comuns... você lê um texto inteiro e não se destaca nenhuma idéia pois as ideias se misturam, se escondem nas outras palavras que não ousam ter acento... nossas idéias ousavam, transgrediam...

- Professor... quer que chamemos o diretor?

- Diretor não tem acento. Governo não tem acento. Ditadura também não. Os controladores não sonham, não ousam... mas o lúdico ousa. Proparoxítonas têm acento. Ou não tem mais?

- Sim, proparoxítonas continuam acentuadas, mas...

- E o gerúndio?

- Que tem o gerúndio professor?

- Ele ainda existe? Banca que corrige redações não gosta de gerúndios, mas o gerúndio é o verbo mais brasileiro sabia? Poderia até se chamar Genivaldo, mas se chama Gerúndio.

- Calma professor, nós já pedimos socorro...

- Nós não estamos a fazer, estamos a rir nem estamos a chorar, estamos fazendo, estamos rindo, estamos chorando (e muito) entendeu? O Gerúndio é brasileiro, é perfeito em sua descrição. O gerúndio é ação, é ativo. O gerúndio não precisa de outro para se completar, ele é completo. Ele é solteiro e feliz e não esses verbos casados e tristes.

- Olha professor, o médico chegando...

- Viu... você viu que frase linda... uma proparoxítona acompanhada de um gerúndio... isso é Brasil, você não faz idéia. Viva as idéias com acentos, viva o gerúndio... abaixo a ditadura da falsidade...

- Que falsidade professor?

- Claro, dizer idéia e escrever ideia é o que? É pensar uma coisa e fazer outra. É falsidade.

- Viva a liberdade!!

E a aula acabou.




Prof. Péricles