sábado, 10 de maio de 2014

ATIRE A PRIMEIRA PEDRA


“Disseram a Jesus: Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante adultério. E na lei nos mandou Moisés que tais mulheres sejam apedrejadas; tu, pois, que dizes?

Jesus, inclinando-se, escrevia na terra com o dedo.

Como insistissem na pergunta, Jesus se levantou e lhes disse: Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra.

E, tornando a inclinar-se, continuou a escrever no chão.

Mas, ouvindo eles esta resposta e acusados pela própria consciência, foram-se retirando um por um, a começar pelos mais velhos até aos últimos, ficando só Jesus e a mulher no meio onde estava.

Erguendo-se Jesus e não vendo a ninguém mais além da mulher, perguntou-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?

Respondeu ela: Ninguém, Senhor! Então, lhe disse Jesus: Nem eu tampouco te condeno; vai e não peques mais”.

Lembrei imediatamente dessa narrativa do evangelista João (VIII, 3-11) quando vi a foto de Fabiane.

Uma mulher apedrejada, caída ao chão. Na foto dá pra ver os pés dos que a cercam sob pequeno círculo. Os apedrejadores.

É uma imagem que a gente logo percebe que é daquelas que jamais se conseguirá esquecer.
Fabiane Maria de Jesus, mãe de dois filhos, está sentada com a face direita coberta de sangue que parece ter origem num enorme ferimento na boca.

Blusinha branca, estampada com detalhes laranja, bermuda azul, certamente quando a colocou pela manhã não pensava que seria fotografada e que sua imagem se espalharia por todo o Brasil.

Sentada no chão, Fabiane chora.

Não sei se chora pela dor dos ferimentos no corpo. Se chora de medo que lhe machuquem ainda mais, ou se chora de indignação.

Seu olhar é de uma criança assustada que teme a surra prometida pelos pais.

Olhos grandes e apavorados. Parecem procurar algo que lhe salve a vida.

Ela havia sido atingida por incontáveis socos e ponta-pés disparados por centenas de bons cidadãos da “Pérola do Atlântico” como gosta de ser chamada a cidade paulista de Guarujá.

Pouco antes, uma multidão estimada em mais de mil pessoas havia invadido a comunidade de Morrinhos, para fazer justiça. Uma notícia plantada na internet identificava Fabiane como a perigosa seqüestradora de crianças que apavora a região de Morrinhos, naquele município.

A multidão inflamada pelas notícias da internet da página “Guarujá Alerta” encurralou Fabiane.

Ali mesmo, sob a terra vermelha e sem formalidades, ela foi julgada e condenada.
Mas, o pior viria depois da foto. Após novas agressões que não se intimidaram com suas lágrimas, nem com seu olhar de criança assustada, foram marretadas que lhe atingiram o crânio e provocariam a morte imediata, calando seu choro e fechando seus olhos assustados para sempre.

O corpo seria jogado numa vala fétida sujando de barro a blusinha branca de detalhes laranja e a bermuda azul já empapadas de sangue.

Segundo testemunhas anônimas, foram duas horas de execução, desde o primeiro soco na cara até o corpo fazer splash na água apodrecida da vala.

Fabiane chorou muito. Nas duas horas de execução esteve consciente em praticamente todos os momentos, até que a marretada final, disparada de cima para baixo provocou a hemorragia fatal.

Segundo a prefeita de Guarujá, Maria Antonieta de Brito que conhecia Fabiane da Igreja que ambas freqüentavam, ela sofria de depressão pós-parto. Tinha problemas psiquiátricos, mas era mãe extremada, participava sempre da Igreja São João Batista do bairro, sendo do grupo de jovens católicos daquela Igreja.

Segundo a prefeita qualquer um que a conhecia saberia que ela jamais faria mal a uma planta, imagina, a uma criança.

E a polícia concorda com a prefeita. Não só concorda como demonstrou com fatos que Fabiane era completamente inocente das acusações de ser a temida seqüestradora.
Sim, Fabiane era absoluta, concreta, completamente, inocente.

Não deixa de ser curioso que nossa civilização, a civilização ocidental se denomine de “cristã” sendo Cristo aquele moço que desenhando na areia exortou ao perdão.

Mas, se somos a civilização cristã, quando foi que endurecemos mais do que a própria pedra arremessada e deixamos de exercer a empatia para ouvir as vozes sensacionalistas do ódio?

Fabiane, vítima de linchamento cruel, foi apedrejada até a morte e era inocente.

Segundo seu marido há 15 dias não tomava os remédios e estava mergulhada em profunda tristeza. Passava a maior parte do dia circulando pela cidade e pela praia, a pé ou de bicicleta, em profunda solidão.

Ficou assim desde a depressão pós-parto.

Agora, Fabiane não chora mais. Mas, bem que poderíamos chorar por nós e pela civilização que construímos, onde, surda aos conselhos do mestre, ousamos, todos os dias, contra muitas outras Fabianes, lançar da primeira a última pedra.

que falta nos faz aquele moço desenhando na areia.

Prof. Péricles

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