sábado, 21 de janeiro de 2017

DE QUASE NÃO SE VIVE



Existem países que quase chegaram lá. Alguns chutaram no gol, a bola bateu nas duas traves e saiu. Não entrou. Não foi gol, mas foi quase.


O Paraguai, por exemplo.


Seu modelo de país independente após deixar a condição de colônia, foi inédito.


Sem grande dívida externa e em marcha acelerada visando à industrialização, o Paraguai, no século XIX foi o sonho da América Latina. Governado por ditadores populares, aboliu o analfabetismo, promoveu uma reforma agrária corajosa e tinha índices de mortalidade infantis menores do que a maioria dos países europeus.


Quase. Mas não concretizou seu modelo, já que foi destruído, num genocídio sem precedentes praticado pelo Brasil, que alguns chamam de ‘Guerra do Paraguai”.


Tornou-se um pária, um molambento país claudicante e condenado.


O Haiti também.


Primeiro país latino-americano a se tornar independente após um processo único em que a metrópole (França) se despiu de qualquer intenção de manter a colonização já que estava envolvida em sua própria revolução, o Haiti teve a chance única de fazer suas opções sem interferência externa e sem uma elite pra atrapalhar e manter a desigualdade como norma, já que essa elite composta por brancos livres e mulatos (10% da população) foi perseguida e massacrada pelos 90% de escravos que compunham o povão.


Mas, a própria violência do massacre isolou o país diante do resto do mundo e isolado, o Haiti sucumbiu.


Na Europa também teve país que quase.


Portugal, por exemplo.


Grande líder das grandes navegações Portugal alcançou de forma pioneira o “novo mundo” e o rico comércio do oriente que poderia fazer dele, Portugal, a maior potência do mundo. Era só questão de detalhes diplomáticos e comerciais para coroar seus esforços exploratórios com a dominação econômica indiscutível de seu tempo.


Mas, Portugal teve um rei que se meteu numa guerra religiosa estúpida, morreu sem deixar herdeiros  e o trono de Portugal foi ocupado por um rei espanhol. Para recuperar a independência o país teve que vender a alma para a Inglaterra a quem perdeu quase toda sua vantagem como país metropolitano.


A História relata esses e outros exemplos de quase lá.


O Brasil  teve momentos em que poderia ter alçado voos mais altos.


Quando proclamou a independência e a República os brasileiros tiveram a folha em branco nas mãos para escrever que país queriam. Em ambas as oportunidades a escolha se fez por sua elite que assim, manteve o país que já existia, que pelo menos para eles, estava bom. Uma economia primário-exportadora que enriquecia poucos e empobrecia o resto.


Quando optou pela busca da industrialização de fato, com Getúlio Vargas, novamente tivemos a chance de reescrever nossa história, e mais uma vez, as elites fizeram dessa experiência apenas um rascunho, não um trabalho final, fazendo morrer a esperança e o próprio presidente


Atualmente, após três mandatos da esquerda, o Brasil ameaçou caminhar na direção de ser um país de todos, uma pátria educadora e menos desigual.


Pagou suas dívidas, fez crescer o PIB e pela primeira vez o crescimento foi acompanhado pela diminuição das misérias e desigualdades.


Parecia, mas não foi... O lado oculto da força se organizou dirigido e patrocinado por interesses outros e a presidente que não cometeu nem um crime caiu, a dívida voltou, a esperança sumiu.


A bola bateu nas duas traves, correu pela linha do gol, e saiu para fora.


Dá até pra desconfiar que o problema, então, não seja o time, mas a torcida.


Quem sabe, para essa torcida que apenas torce e xinga o juiz, já não tenha chegado a hora de uma boa invasão de campo para mostrar que cansou de esperar pelo cumprimento do tal destino de gigante, prometido, mas sempre amordaçado, pelos que sempre ganham com a miséria alheia?


Ou então, sejamos sempre, apenas um, quase.



Prof. Péricles





quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

CRISE ENTRE OS PODERES


Por Luciano Martins Costa



O Brasil corre o risco de acordar com as instituições irremediavelmente fragmentadas.

Esse é o resultado da operação que rompeu a ordem democrática ao desfazer a decisão tomada nas urnas em 2014 pela maioria dos brasileiros.

Os últimos dias registraram um embate inglório entre o Congresso Nacional e os integrantes da força-tarefa que tocam a Operação Lava-Jato.

Inglório, porque ambos os lados têm razão ao acusar os desafetos de desonestidade – e neste caso nenhum deles está com a verdade.

Embora a causa matriz da desavença seja absolutamente defensável, por se tratar de uma necessária atualização da lei de 1965 que coíbe o abuso de autoridade, há nessa iniciativa apressada um indisfarçado objetivo de blindar certas autoridades que estão na mira das investigações.

As mais reluzentes delas são o presidente do Senado e o presidente transitório da República.

Por outro lado, não se justifica que também sejam blindados os operadores da Justiça: nenhum juiz, procurador ou integrante da Polícia Federal pode se colocar acima das demais instituições em sua missão de apurar crimes de corrupção.

Acontece que os abusos nunca foram denunciados ou sequer considerados como tais enquanto a ousadia dos agentes públicos ajudava a derrubar o governo eleito nas urnas.

Apenas quatro meses depois de tomar posse, com a promessa de “resgatar a força da economia e recolocar o Brasil nos trilhos”, o inquilino do Planalto se vê sitiado pelos antigos aliados e vai sendo arrastado pela sucessão de escândalos rumo ao seu lugar na História: a “cesta” seção.

A mídia tradicional lança combustível na fogueira das vaidades, de olho na chance de trocar Michel Temer por alguém mais palatável e mais confiável: um prócer do PSDB paulista, por exemplo, ou, num caso extremo, o senador cearense Tasso Ribeiro Jereissati.

Pode-se afirmar que grande parte das opiniões divulgadas nasce enviesada pelo processo de criminalização da política, que cresce como um tsunami no rastro das denúncias de corrupção.

A leitura do projeto recomenda cautela: não há sinais de incoerência no texto que prevê punições para magistrados e integrantes do Ministério Público quando suas condutas forem incompatíveis com o cargo.

Porém, pode-se interpretar a letra da proposta como uma ameaça a juízes e procuradores que extrapolam de suas funções e usam dois pesos e duas medidas conforme a ideologia ou a posição político-partidária do acusado.

Pode-se apostar que 9 entre dez leitores de jornais e telespectadores dos noticiários da TV opinam sem ter lido o texto, mas é certo que muitos deles sairão às ruas de verde e amarelo.

Até mesmo advogados, que sofrem o risco de se tornarem irrelevantes diante das alianças entre promotoria e magistratura, têm aderido aos protestos.

O caos está instalado.

À sombra do edifício da Fiesp, na Avenida Paulista, os defensores da volta da ditadura tomam carona outra vez no carro de som dos indignados.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

A CONSTRUÇÃO DA INTOLERÂNCIA


A intolerância não se adquire pronta e acabada.

Na verdade, a melhor imagem que se faz não é a de um produto que já vem pronto e embalado, mas uma pequena planta irrigada desde os tempos de semente até tornar-se frondosa árvore.

O intolerante não nasce intolerante, é feito, embora depois trate de se aprimorar.

Quando os pais ensinam seus filhos que o coleguinha negro do colégio é diferente e que, em certas ocasiões, como o aniversário em casa com os amiguinhos, deve ser evitado, se está regrando a plantinha.

Quando o professor permite o bulling ao menino com trejeitos que segundo a regra da maioria da turma, e dele mesmo, são efeminados, está também, dando sua contribuição.

Além dos pais e mestres existem ainda os plantadores oficiais de intolerância.

A mídia, por exemplo, ao apresentar programações que separam e rivalizam meninas e meninos ou quando desfilam filmes e programas que cultuam a violência e o machismo, faz a sua parte com maestria.

Em geral, o preconceito se enraiza junto com convicções precipitadas mas póstas como verdades incontenstáveis.

Nesse processo de construção de ódios algumas nuances são tão sutis que nem os agentes diretos no processo o percebe.

Exemplo são as muitas mães que cultuam um machismo desacerbado e imprudente cujas origens estão na própria educação que recebeu e que que transmite sem parar para pensar. 

O pessoal que coleciona piadas homofóbicas, também participam e até mesmo o culto à mulher virgem e frágil cujo valor está na beleza e que muitos acham ser elegante tem sua dose forte na desigualdade nos tratamentos.

Depois da cobra criada falta apenas o aprimoramento e aí, a personalidade de cada um faz o resto, mas o caminho foi previamente construído.

Então a barra pesa, pois, a intolerância nunca anda sozinha e tem uma família unida. Ela é filha do ódio, irmã do orgulho e do preconceito, mãe da hipocrisia.

Dificilmente alguém anda acompanhado de apenas um desses pares.

Quem caminha com essa turma carrega o ódio escondido no bolso já que a hipocrisia exige um comportamento dissimulado, mas que sempre se trai quando algum tipo de valor está em julgamento.

Os que andam com essas companhias participam da violência da qual se julgam vítimas, defendendo a violência do estado e bradando que bandido bom é bandido morto.

Com a visão tapada por tanta coisa ruim são instrumentos úteis para aqueles que buscam manter a sociedade desigual e excludente como a conhecemos. É a maneira de fazer crer que a exclusão é natural e, de certa forma, uma opção do excluído.

Assim, a desconstrução dessas anomalias passa, não apenas pela necessária transformação social, mas antes de tudo, na transformação da própria cidadania.

Não será por decreto nem por atos revolucionários, pois a Lei sem a vivência nas criaturas é efêmera, como o demonstra a Lei Maria da penha.

É dever de todos lutar pela desmistificação da intolerância como coisa natural entre as pessoas.

Enquanto isso, jovens pais, procurem saber exatamente, que tipo de semente está sendo plantada no terreno fértil da personalidade de seus filhos.




Prof. Péricles

sábado, 14 de janeiro de 2017

A ERA DO PÓS-RIDÍCULO


Por Kiko Nogueira


Eu vi a formulação na conta dos Fatos Nacionais no Twitter. A foto de João Dória e Regina Duarte fingindo que varriam ruas em São Paulo tinha a seguinte legenda: o “ano do pós-ridículo”.

É uma definição feliz.

Dória, Regina e Janaína Paschoal são luminares da era do pós-ridículo. Seguidos de perto por Crivella, Alexandre de Moraes, Michel Temer e a mulher Marcela.

O pós-ridículo é uma ampliação do conceito que foi eleito palavra do ano em 2016 pela Universidade de Oxford. “Pós-verdade” (post-truth) foi devidamente dicionarizada.

É um adjetivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.

Dois acontecimentos políticos foram citados como exemplares no emprego dessa prática: a campanha de Trump e o Brexit. As mentiras tiveram papel crucial em ambos os casos. Ainda que desmascaradas, isso não mudou o voto da maioria.

Nada seria possível sem as redes sociais. O Facebook, atualmente, tenta se livrar das notícias falsas fazendo com que sites que as compartilhem não usem sua rede de anúncios e não ganhem dinheiro com isso.

O pós-ridículo também deve muito de sua ascensão a essas mídias.

Nelson Rodrigues, gênio absoluto, já tinha avisado que os cretinos perderam a modéstia. O que ocorre é que, hoje, eles publicam suas cretinices e são seguidos por outros cretinos, formando um bolo que adquire um tamanho impressionante.

O superego foi eliminado. A tibieza intelectual de Janaína Paschoal não era novidade e ficou conhecida com o processo do impeachment. Seu vexame nos arcos do Largo de São Francisco, quando encarnou uma pomba gira gritando sobre uma tal república da cobra, deveria ser suficiente para sua aposentadoria precoce ou seu retorno ao anonimato.

Não. No pós-ridículo, ela ganha empuxo.

Sua conta no Twitter é uma calamidade intelectual e, de quebra, uma mancha na reputação da faculdade em que leciona. A vírgula, usada ao bel prazer, enfeita estupidezes como a invasão do Brasil.

“Com uma base militar na Venezuela, Putin estará a um passo de atacar o Brasil. Estão rindo? Pois eu estou falando sério”, escreveu na primeira sentença de uma série.

Recentemente, prontificou-se a atuar como “inspetora de banheiro” do Ibirapuera. Virou piada, novamente.

Menos para os demais surfistas do pós-ridículo, como João Dória, que lhe telefonou porque viu nela uma igual. Janaína contou que o prefeito “falou brincando sobre fazer uma nomeação, eu agradeci, mas eu não gosto dessas formalidades e o meu trabalho será de cidadã para mostrar que os cargos não são tão essenciais assim”.

As aparições de Dória como gari são triunfos do pós-ridículo. Na primeira, mandou atirar moradores de rua para debaixo de um viaduto, cobriu com tela, e fingiu que limpava o chão que já tinha sido limpado. Tudo diante das câmeras.

Na segunda incursão, Dória contou com a mão de outra musa do pós-ridículo, Regina Duarte. A atriz inventou que integrava uma “associação que batalha por uma cidade mais digna, mais humana” e por isso estava no local. Totalmente por acaso.

“É nois! O importante é lutar por uma São Paulo mais limpa, por dentro, na alma”, afirmou. “Não quero ser política, mas acho que todos os moradores de São Paulo devem se engajar”. (Onde estão os filhos ou familiares responsáveis por esse pessoal??)

Napoleão um dia observou, após uma derrota no Egito, que do sublime ao ridículo é apenas um passo. Nós demos esse passo coletivamente e estamos enterrados até o pescoço numa indigência mental que parece ser a regra.



quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

COLAVAM NAS PROVAS E SE JULGAM PROFESSORES



Havia um personagem num programa humorístico, se não me engano, no “Viva o Gordo” que, diante de um questionamento sobre qualquer bobagem que dizem, repetia o refrão “não discuto com leigos, não discuto com leigos”.

Quando se é leigo sobre determinado assunto e saímos por aí a falar francamente sobre o que não entendemos bem, facilmente cometemos erros bizarros, e, até mesmo, ridículos.

Claro que ter opinião é um direito de todos nós, mas, o perigo é, precipitadamente, se formar convicção sobre qualquer coisa sem ter uma gama mínima de informação de quem entende melhor do assunto, para balizar nossa opinião.

Se mesmo assim, insistimos em expor o que pensamos, ao mesmo tempo em que exercemos um direito assumimos riscos e por isso, é necessário estarmos abastecidos de humildade para reconhecer que sabíamos pouco daquilo que ora expúnhamos e que, falamos bobagem.

Por isso é tão superficial analisar o procedimento alheio, já que, geralmente, ao fazer isso, estamos trazendo os nossos valores, as nossas impressões sobre algo e não as impressões e vivências do alheio.

Certa vez, em 2003, um político nordestino, num evento festivo de recepção ao recém-empossado presidente Lula, fez um inflamado discurso contra os paulistas e sua pretensa arrogância em relação ao restante do Brasil, em especial, ao nordeste. Pobre homem imprudente. Ao responder ao discurso Lula não só discordou dos termos agressivos utilizados com ainda defendeu o povo paulistano que o recebeu quando migrou de Pernambuco para a Paulicéia desvairada, enquanto o político nordestino, no outro lado do palanque não sabia onde se enfiar.

Isso que dá, geralmente, quando se mete a impor os seus valores a outro sem conhecer o que lhe vai no íntimo.

Isso é particularmente conflitante quando pessoas defendem suas simpatias ou antipatias políticas pessoais usando argumentos pretensamente históricos.

É muito importante ressaltar que história é ciência, não é opinião.

A história possuí método científico e exige provas para suas conclusões, mesmo não sendo essas provas empíricas que alguns julgam serem as únicas provas válidas.

Os diferentes narradores dos fatos históricos, não devem, mas podem enfatizar, conforme suas paixões determinados aspectos dos fatos narrados, mas jamais deturpa-los conforme suas próprias ideias, isso porque, história não é estória, é ciência.

Por exemplo, quando alguém antipetista, tenta esconder seus preconceitos contra esse partido, afirma categoricamente que nunca se viu corrupção igual aos dos tempos do PT, ou que na Ditadura Militar não havia corrupção, esse alguém comete um patético erro de julgamento histórico.

Um indignado leitor do Blog, dia desses, para contrariar a opinião exposta em alguns artigos afirmou que não se rotula algo de direita e esquerda pelos princípios ideológicos ou de práxis, mas pelo “tamanho e poder” do governo, sendo esquerda quem defende o estado interventor na economia e direita o governante que é contra (?).

Disse mais, o leitor indignado. Disse que o golpe de 1964 não foi um golpe já que a Constituição permitia a “intervenção militar” (??) e, na sequência de seu surto, que já havia grupos de guerrilha no Brasil, antes mesmo de 1964 (certamente referia-se aos grupos de defesa organizados pelas ligas camponesas de Francisco Julião, desconhecendo completamente as enormes diferenças entre esses grupos de defesa e seus objetivos com os objetivos de grupos de guerrilha).

As redes sociais tornaram-se, nesse aspecto, armas de tortura ao professor de história e a todo aquele que a estuda e quer bem à veracidade dos fatos.

Expandem-se convicções aos borbotões sem a menor preocupação com a honestidade.

Defendem-se pontos de vistas a partir de citações que jamais foram citadas, estatísticas que jamais foram realizadas ou conceitos que nunca foram emitidos, com o propósito de fazer valer o seu ponto de vista.

E isso, não é apenas errado, é capcioso.

Parafraseando Churchil, nunca tantos que odiavam tanto estudar história opinaram tanto sobre algo que não estudaram direito, mas tornaram-se doutores.

Faríamos bem, todos nós, se respeitássemos um pouco mais a ciência dos fatos e a veracidade das conclusões históricas.

Quanto ao indignado leitor do Blog lhe foi dado uma visão mais coerente daquilo que ele defendia e, certamente ainda defende porque, quem quer se recusar a entender, simplesmente, não entende.

E por aí ficamos, sem impor nada, já que, como dizia o grande Jô Soares, “não se discute com leigos”, e, embora jamais nos furtemos de colaborar com os que querem saber mais, nos incomodam os que sabem menos, colavem nas provas, e hoje se julgam professores.



Prof. Péricles

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

EM MEMÓRIA DE PAULO EVARISTO ARNS


Por Celso Lungaretti


Quando o entrevistei longamente em 2003, dom Paulo já era um homem combalido, que caminhava com dificuldade e tinha problemas de audição — decorrentes, esclareceu-me, de ferimentos sofridos quando de uma tentativa de sequestro num país latino-americano (pretendiam obter, em troca, a liberdade de um chefão do narcotráfico).

Tal entrevista permanece bem atual, daí eu estar reproduzindo aqui seus principais trechos, sem alterações na forma como então a redigi.

No final, apesar de sua dificuldade de locomoção, fez questão de percorrer comigo o longo caminho até a saída. E se despediu com uma frase marcante: “Precisamos contar essas histórias [do que aconteceu neste país durante a ditadura militar] às novas gerações. É importante que elas saibam de tudo isso!”

Muitos programas pioneiros, na linha da inserção social, foram introduzidos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo entre novembro/1970 e maio/1998, período em que, como arcebispo metropolitano de São Paulo, dom Paulo foi Grão Chanceler da instituição.

Logo que se tornou o principal responsável pelos rumos desta universidade, dom Paulo fez a primeira visita ao Conselho da PUC. E disse: “Não quero uma escola de 2º grau melhorada. O que me interessa é que vocês façam uma pós que dê bons professores para todos os lugares do Brasil; e que todas as teses e tudo o que vocês discutirem além da escola se refira ao povo e ajude o povo. Que isso seja a norma daqui para a frente”.

Os resultados não tardaram, diz dom Paulo. “A Arquidiocese se organizou em pastorais diferentes – p. ex., a Operária, a da Terra, a do Trabalhador –, então eu consegui que a Faculdade de Direito se interessasse em ir, durante a semana ou no sábado, à periferia e ver como se poderia ajudar essa população e quais os problemas reais da periferia. A mesma coisa aconteceu com a assistência social, que, aliás, está trabalhando nessa linha até hoje, com métodos sempre novos e recebendo apoio da Europa e de outros lugares, com uma eficiência muito grande.”

Hoje, essas iniciativas pioneiras da PUC/SP encontraram muitos seguidores e há um sem-número de empresas e instituições esforçando-se para dar uma contribuição positiva à sociedade.

“Os estudantes da USP me procuraram em 1973 quando um colega [Alexandre Vannucchi Leme] foi assassinado pelos órgãos de segurança. Os estudantes se reuniram, uns 10 mil, e mandaram representantes à minha casa, à noite, para que eu fosse lá falar aos alunos.

“Eu disse que era melhor reunir os estudantes, mas não dava para fazer no campus da universidade, porque ele estava cercado por policiais e oficiais do Exército.

“Então, decidi fazer na catedral. Eu disse: ‘Na catedral, nós falamos o que queremos, e nós falaremos aos estudantes. Encham a catedral de estudantes e de povo, que nós diremos a verdade’. E foi o que eles fizeram. Às 15h, eu fui lá, fiz aquele ato solene em favor do estudante e celebrei a missa para o falecido. Fiz o sermão sobre o não matarás!, o mandamento central dos 10 mandamentos. Foi sobre isso que eu falei para eles, e eles participaram, vivamente, da missa e de toda manifestação religiosa posterior.

“Depois, em 75, foi a vez do Herzog; em 76, a do Manuel Fiel Filho; e em 79, a do Santo Dias, quando recebemos de 150 mil a 200 mil pessoas, que andaram desde a igreja de Nossa Sra. da Consolação. A multidão foi engrossando. Ao chegar na Catedral da Sé, não cabia nem na igreja nem na praça, então nós fizemos uma cerimônia mais curta, mas muito mais participada por todos os operários.“

“Quando o Herzog foi assassinado – lembra D. Paulo –, em 1975, os jornalistas me pediram que houvesse um ato ecumênico na catedral. Os judeus fazendo o ato deles em hebraico, portanto, não na língua que compreendêssemos. Foi impressionante e muito bonito.“

Modesto, D. Paulo evitou comentar que sua decisão foi um ato de enorme coragem. Primeiramente, porque a alta hierarquia católica não viu com simpatia sua iniciativa de oficiar missa ao lado de um rabino e de um reverendo. Depois, por ser um desafio frontal ao regime militar, que o ditador Geisel engoliu, pedindo apenas a D. Paulo que segurasse seus radicais, “enquanto eu seguro os meus”.

Finalmente, por ter, em nome de ideal de justiça e solidariedade cristãs, corrido o risco da ocorrência de tumultos e mortes que teriam um peso devastador em sua consciência de religioso.

Graças a ele, foi viabilizado o ato que acabou se tornando um divisor de águas: a partir desta vitória sobre a intimidação, a ditadura começou sua lenta, mas irreversível, marcha para o fim.

Sobre o Governo Lula, antes mesmo da crise do mensalão, D. Paulo já mostrava uma ponta de apreensão, ao se dizer esperançoso de que “o Brasil não perca esta ocasião e não afunde o barco em vez de conduzi-lo a uma margem da terra onde haja outra terra e outro céu, como diria a Sagrada Escritura; onde haja outra possibilidade de sonhar e outra possibilidade de viver com dignidade, mas para todas as pessoas e não só para uma parte”.

E, inquirido sobre o menor engajamento atual da Igreja às causas sociais, ele finalizou com uma mensagem de esperança: “A Igreja é o povo. Se o povo se mobiliza bem, a Igreja também se mobiliza. Então, é preciso unir esses dois conceitos, o povo de Deus e o povo, simplesmente. Nós precisamos caminhar para a fraternidade, para uma possibilidade de todos serem respeitados como filhos de Deus e irmãos uns dos outros”.

Não há como retratarmos a grandeza de um D. Paulo Evaristo Arns numa única entrevista. O principal, no entanto, é que suas gestões junto às autoridades salvaram a vida e evitaram a tortura de resistentes, no pior momento da ditadura.

Fiel ao espírito da igreja das catacumbas, foi o pastor que tudo fez para que seu rebanho sobrevivesse a um tempo de lobos. Um imprescindível, enfim.



Celso Lungaretti, jornalista e escritor, foi resistente à ditadura militar e participou da Vanguarda Popular Revolucionária. Escreveu o livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial).