domingo, 8 de dezembro de 2013
O APARTHEID
Quando foram expulsos do Brasil em 1654, os holandeses invadiram algumas Ilhas das Antilhas. Antes, porém, de trazer os colonizadores para cá, exterminaram toda a população nativa da região num holocausto muito típico dos impérios coloniais. No século XVIII a expansão do Império Neerlandês atingiu o sul da África com a fundação de colônias no Transwal. Pouco mais tarde forças britânicas também ocupam parte da região, de olho nas jazidas de ouro e diamantes recém descobertas na região.
No final do século XIX duas violentas guerras, as “Guerras dos Boers ou dos Bôeres” entre holandeses e ingleses definiram a soberania dos britânicos sobre a região, embora os holandeses mantivessem autonomia em alguns pontos.
Foram os Bôeres que criaram um regime que afastava legalmente brancos de negros.
Em 1909 Londres criou o “Ato da África do Sul” que deu origem ao país, fundado em 31 de maio de 1910 e suprimiu definitivamente o poder dos holandeses (bôeres) na região.
Em 1931 a África do Sul se tornou independente do Reino Unido e, em 1948 ocorreram as primeiras eleições livres e que decidiram as estruturas do novo país. Essas eleições foram vencidas, através dos mais violentos casuísmos pelo Partido Nacional da África do Sul, organização política racista que reivindicava o direito dos brancos de manterem sua dominação elitista, baseada nas suas origens européias e superioridade racial.
Foi assim que, a partir de 1948 a Constituição da África do Sul instituiu um sistema asqueroso de segregação racial, política e civil no país. Este regime perdurou de 1948 até 1993, quando depois de anos de sangue, o isolamento da África do Sul e um severo boicote internacional sobre as relações econômicas do país, somado a luta interna liderada pelo Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela, as primeiras eleições multirraciais decretaram a vitória do primeiro presidente negro do país.
A legislação do Apartheid dividia a população em negros, brancos, de cor e indianos (o despertar de Gandhi para a revolta contra a desigualdade se deu num acontecimento do qual foi vítima em viagem de trabalho à África do Sul).
Foram decretadas áreas residenciais restritas a brancos e negros (guetos) que implicaram inclusive em remoções forçadas de grande parte de sua população. As áreas restritas a brancos e negros passaram a ser identificadas com cartazes de alerta e os serviços públicos de saúde e educação se diversificaram, cabendo a população negra serviços muito inferiores aos prestados aos brancos.
Os negros só podiam circular de posse de uma caderneta de identificação obrigatória e sua presença em áreas exclusivas de brancos era punida com prisão.
Importante lembrar que o regime não se instalou por inteiro em 1948, mas foi se estruturando com o tempo. Assim:
- em 1949 é proibido o casamento entre brancos e negros e tornado nulo seus efeitos em caso de desobediência e presos os infratores;
- em 1950 fica obrigatório o registro da cor nas certidões de nascimento de qualquer sul-africano (branco, negro, indiano, de cor);
-- em 1951 fica proibida a circulação de negros em determinadas áreas das cidades (hipódromo, parques, área residencial de brancos, etc.) e são criados os bantustões (guetos) só para negros. Na verdade, com os bantustões, os negros perdiam a cidadania do próprio país;
- em 1952 é proibido o uso, para negros, de determinadas instalações públicas (bebedouros, banheiros, etc.);
- em 1953 são criados sistemas diferenciados de educação para as crianças brancas e as crianças dos bantustões.
A luta contra o apartheid foi sangrenta.
Cientes da enorme diferença numérica e apoiado pelos EUA e aliados, o regime do apartheid sempre foi avesso às negociações. Sobraram conflitos e massacres.
Houve um tempo em que a África do Sul entrou num ciclo vicioso macabro: havia manifestações de rua dos negros que eram violentamente reprimidas pela polícia (extremamente bem equipada, inclusive com carros totalmente blindados do tipo “caveirão”). Militantes negros morriam. Nos funerais novas manifestações, novos conflitos e mais mortos. Nos funerais...
Restou o caminho da luta armada onde se destacaram pessoas como Steve Bantu Biko, líder estudantil que criou em 1968 a Organização dos Estudantes Sul-Africanos. Depois de muitas lutas Biko foi preso em 6 de setembro de 1977 e morto acorretado às grades de uma janela da penitenciária, com traumatismo craniano após um dia inteiro sob as mais terríveis torturas.
O próprio Mandela iniciou sua carreira ativista criando a “Umkhonto We Sizwe” (Lança de Uma Nação), sendo seu primeiro comandante em chefe.
O fim do Apartheid ocorreu, porém, por uma soma de fatores internos e externos.
Além da resistência negra dentro do país, externamente a África do Sul foi ficando cada vez mais isolada graças às pressões dos povos do ocidente sobre seus governantes a não mais apoiarem um regime assassino (a mídia brasileira oficial, que hoje decanta Mandela, não apoiava as manifestações populares e rotulava Mandela de terrorista). Além disso, para manter sua hegemonia, o governo branco de Peter Botha envolveu-se nas guerras pós-independência de Moçambique, e principalmente, Angola. Tropas aliadas de Cuba desembarcaram na África em apoio ao governo de esquerda da UNITA e derrotaram fragorosamente os sul-africanos, enfraquecendo seu governo.
Minado por dentro, derrotado e isolado por fora, o novo governante, Frederik De Klerk, foi obrigado a negociar e a enfrentar a força insuperável de Mandela.
Eleito presidente, Mandela governou de 1994 a 1998. Promoveu a união e a pacificação. O “banho de sangue” da revanche, não aconteceu.
A morte de Nelson Mandela, líder maior da luta pela igualdade racial, encerra, assim um capítulo de dor, sangue, lutas e vitórias desse povo.
Se a despedida era inevitável, pelo menos, ao contrário de Biko e de outros mártires, Mandela pode fechar os olhos vendo seu povo finalmente unido e seu país reconstruído.
Prof. Péricles
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
MANDELA E O COBERTOR
Contava Mandela que fazia muito frio na prisão em que se encontrava. Houve um tempo em sua vida que sua maior ambição, seu maior desejo, era um simples cobertor. Logo ele percebeu que não adiantaria escrever um tratado acadêmico ao Diretor da Prisão solicitando o cobiçado cobertor, pois isso iria gerar burocracia, despertaria expectativas políticas e ele continuaria passando frio por muito tempo.
Percebeu, então, que a única forma de atingir seu objetivo era o responsável pela seção da cela onde estava. Um simples, mas, naquele sentido, poderoso funcionário.
Para que suas noites fossem menos penosas ele precisaria dialogar com o carcereiro. Não com o Diretor.
O diálogo o levou a entender melhor aquele homem. Soube que era muito mal
pago, assim como seus demais colegas, praticamente não tinha nenhum estudo formal e tinha medo, muito medo que os negros tomassem seu emprego, expulsassem sua família, o deixassem sem nada, talvez até, sem vida.
Nelson Mandela, que era advogado, tornou-se uma espécie de conselheiro daqueles homens manteve o interesse em suas reivindicações e ajudou-os inclusive em questões trabalhistas.
Ele sempre contava essa história, que chamava de “estratégia do cobertor” para dizer o quanto aprendera na prisão.
Ouvir as pessoas humildes. Entender como o medo separa as pessoas que nem sequer se conhecem. Reconhecer o poder muito maior dos pequenos, do que, nos governantes.
Ao ganhar a confiança daqueles homens, dizia, entendeu melhor o quanto somos iguais em nossas carências.
Já na presidência do país, Mandela repetiria que a opressão trás o medo e o medo a separação. Era necessário, dizia ele, um cobertor novo para o país.
No primeiro dia de mandato percebeu, ao entrar na sede do governo, que os funcionários (todos brancos) o esperavam perfilados, certos de que seriam demitidos e trocados por servidores negros. Ergueu a voz para que todos pudessem ouvi-lo dizer que, caso desejassem ir embora, não seriam detidos, mas se quisessem ficar e ajudar a reconstruir uma nação, doando ao país sua experiência, seriam muito bem aceitos. Segundo testemunhas, houve uma profunda emoção entre todos e Mandela pôde contar com toda a fidelidade daquele grupo.
Nos cinco anos em que esteve na presidência (1994-1999) ele mudou as condições de vida de muita gente. Pessoas que nunca haviam tido eletricidade em suas residências. Novas casas foram construídas para quem vivia em bairros de lata, muitos passaram a ter água potável. Mas, sem dúvida, seu maior feito foi ter impedido o grande massacre que ameaçava se abater sobre o povo sul-africano.
Ah... sobre o cobertor, Mandela nunca mais passou frio à noite.
Prof. Péricles
quinta-feira, 5 de dezembro de 2013
MANDELA E O FAROL
Algumas pessoas nascem para ser farol.
O farol, você sabe, ilumina as trevas por mais densas que elas sejam.
Porém, ao pé do farol, tudo é muito escuro.
Algumas pessoas nascem para se farol. Iluminam a escuridão de seus povos com uma luz persistente que não se apaga, mesmo diante da maior das tempestades.
Levam seus contemporâneos a dias mais seguros, embora a nave esteja sendo engolida pelo mar.
São protagonistas de seu tempo, artífices dos tempos futuros.
Eles próprios, porém, estão condenados as águas mais profundas e à escuridão, ao pé do farol.
Nelson Mandela foi um homem farol.
Com sua luz radiante atravessou os sangrentos anos em que seu povo era diariamente massacrado nas ruas.
Diariamente humilhados, desprezados, estrangeiros dentro de seu próprio país.
Sua marca registrada foi a rebeldia, a não aceitação da injustiça covarde.
Mas a ele estava reservado quase trinta anos de prisão solitária entre paredes frias e insalubres.
Tiraram a liberdade e lhe deram uma tuberculose.
Tiraram os anos mais jovens e lhe deram a solidão.
Mas, apesar de acorrentado ao pé do farol, não conseguiram tirar sua luz.
Mandela sobreviveu aos anos intermináveis de prisão. Seu nome virou hino entoado por seu povo, embora amaldiçoado pelos inimigos e manchado como terrorista pela mídia internacional, incluindo a brasileira.
Combateu primeiro como militante da luta armada, depois como político e negociador e finalmente sendo símbolo de resistência pacífica.
Combateu a um dos mais tirânicos e cruéis dos sistemas políticos da história, o apartheid.
Esse sistema forjado pelos holandeses na África antes de sua expulsão na Guerra dos Bôers, e posteriormente instituído pelos ingleses, tinha o apoio internacional dos Estados Unidos e das potências capitalistas aliadas.
Impedia qualquer tipo de miscigenação de forma constitucional. Casamento entre tipos raciais distintos era punido com a prisão dos cônjuges. Presença de negro em ambiente de branco era passível de longo tempo na prisão.
O apartheid, com todo apoio que sempre teve dos Estados Unidos e seus parceiros na exploração da principal riqueza nacional da África do Sul, a extração de diamantes, só caiu pela luta do Congresso Nacional África, partido clandestino liderado por Mandela, e pelas derrotas diante das tropas cubanas na luta pela independência de Angola e Moçambique e Rodhesia (atual Zimbabue).
Como prisioneiro condenado a prisão perpétua, virou mártir e espinho que sangrava diariamente a alma do execrável regime que privilegiava 5 milhões de brancos e jogava na marginalidade 20 milhões de negros.
Mas, também virou esperança e era citado como oração toda vez que as forças pareciam faltar a sua gente.
Presidente do País após sepultar o apartheid, Mandela governou de 1994 a 1999, e não apenas evitou o revanchismo e o esperado banho de sangue, como ainda promoveu a unificação e a pacificação de todos os sul-africanos, brancos e negros. Graças a ele, que tinha todos os motivos possíveis para uma vingança, o esperado “banho de sangue” não aconteceu.
Nelson Mandela morreu hoje, 05 de dezembro de 2013, aos 95 anos.
Agora, com a África do Sul pacificada, finalmente ele pode subir ao ponto mais alto do farol, para se tornar eternamente luz.
Prof. Péricles
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
HIPOCRISIA A 100%
Por Marcelo Zero
Lord Byron costumava dizer que, na Inglaterra, a única homenagem que se prestava à virtude era a hipocrisia. Mas a frase de Byron pode ser aplicada a qualquer império. Com efeito, nas relações internacionais das grandes potências o que predomina é uma flexível “ética de lupanar”, diriam os analistas mais diretos. “Realpolitik”, diriam os mais elegantes.
O caso do programa nuclear iraniano, objeto de acordo recente, é emblemático.
Pode parecer estranho, mas esse programa não foi desenvolvido pelos aiatolás, religiosos mais afetos às leituras do Corão do que ao desvendamento da intrincada tecnologia ocidental. Tampouco caiu de nenhum dos sete céus nos quais acreditam os muçulmanos.
Na realidade, ele caiu do colo do Departamento de Estado dos EUA.
Do colo dos EUA para o colo do regime do Xá Reza Pahlevi, ditador tão sanguinário quanto pomposo, que se autoproclamava herdeiro de Dario e Xerxes. De fato, o primeiro reator nuclear iraniano, inteiramente construído pelos EUA, começou a operar já em 1967, com urânio enriquecido a 20%, o mesmo grau de pureza que hoje se proíbe ao Irã. Posteriormente, o Xá firmou um acordo para que os EUA construíssem no Irã nada menos que 23 usinas nucleares até 2000.
Outras potências se juntaram a esse notável esforço em prol da segurança mundial. A Alemanha firmou, em 1975, acordo com Teerã para a construção de duas grandes centrais nucleares baseadas em água pressurizada, um investimento de US$ 6 bilhões. A França criou com o Irã a Sofidif (Société franco–iranienne pour l’enrichissement de l’uranium par diffusion gazeuse), mediante um investimento de US$ 1 bilhão. Com a sociedade criada, o Irã teria o direito de usar 10% do urânio enriquecido.
Mas não ficou só nisso. Em 1976, os EUA ofereceram ao Irã uma usina de reprocessamento de material radioativo, que permitiria aos confiáveis descendentes do Império Persa o domínio de todo o ciclo nuclear e a fabricação de plutônio, material com o qual se pode construir uma bomba atômica. Uma bem “suja” e tóxica.
O Xá chegou a virar garoto-propaganda da indústria nuclear internacional. Entre um telefonema e outro para a Savak, sua polícia secreta, responsável pela tortura e morte de milhares de desobedientes vassalos, o Xá achou tempo para pousar, sorridente, em propagandas de fabricantes de reatores nucleares.
É evidente que os EUA, com todas essas ofertas, estavam começando a criar as condições para um possível armamento nuclear do Irã, na época grande aliado dos norte-americanos no Oriente Médio. Relatório da CIA de 1974, já “desclassificado”, indicava claramente essa possibilidade. Segundo o relatório, se o Xá ainda estivesse vivo em meados da década de 1980, e se outros países da região se armassem (notadamente a Índia, como de fato aconteceu) o Irã, “sem dúvida”, seguiria o mesmo caminho. Estranhamente, isso não parecia inquietar muito Washington.
Tudo mudou com a queda de Pahlevi. Todos os acordos e contratos foram cancelados ou revistos, mesmo sendo instrumentos jurídicos de Estados, e não de governos. Em alguns casos, o dinheiro dos investimentos iranianos sequer foi devolvido, como aconteceu com a sociedade francês-iraniana para o enriquecimento de urânio.
Entretanto, como o Irã, ao contrario de Israel, é signatário do TNP, que diz que é “direito inalienável de todas as Partes do Tratado” desenvolverem a energia nuclear para fins pacíficos, “sem discriminação”, os aiatolás acharam que poderiam prosseguir com o programa, sem a devida autorização da superpotência. Ledo engano. Com o tempo, a pretensão do novo regime iraniano foi sendo sepultada por uma série de embargos e duras sanções econômicas.
Outra vítima desse brutal cinismo foi Lula. Ele também levou a sério o multilateralismo e a construção conjunta da paz. Lula, com o apoio explícito de Obama, fechou um acordo magistral com Teerã sobre o programa nuclear.
Tal acordo, praticamente idêntico ao que havia sido tentado 6 meses antes, sem êxito, pelos EUA, previa o envio de 1.200 quilos de urânio enriquecido iraniano para o exterior e tinha dois efeitos imediatos: a) impossibilitava a construção de qualquer artefato nuclear por parte do Irã, pois para isso seria necessário enriquecer a mais de 90% cerca de 2.500 quilos de urânio levemente enriquecido, sendo que os iranianos ficariam com apenas cerca de 800 quilos, e b) abria as portas para uma cooperação pacífica entre o Irã e as potências ocidentais. El Baradei, ex-diretor da AIEA, uma das maiores autoridades mundiais no tema, deu pleno apoio ao acordo. Gary Sick, que foi membro do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, considerado um dos maiores especialistas norte-americanos em Irã, afirmou que “ter o Brasil e a Turquia trabalhando ativamente para desenvolver uma nova abordagem da questão iraniana era uma enorme vantagem para os EUA”. Essa ação, segundo Sick, tinha “valor incalculável para progressos futuros”.
Mas prevaleceu, de novo, o cinismo imperial. Os EUA, que não esperavam o êxito do Brasil, preferiram sabotar o bom acordo. É que o acordo retirava protagonismo dos EUA numa região estrategicamente sensível. Eles ficaram melindrados com o êxito alheio e receosos quanto a manter o controle absoluto do processo de negociação. Ademais, havia, e ainda há, o interesse em desestabilizar o regime iraniano.
Tão inesperada quanto essa cínica sabotagem dos EUA foi a hipócrita reação em âmbito interno. Nossa lamentável matilha de vira-latas se regozijou com a sabotagem contra o Brasil e criticou o presidente por sua indevida ingerência nas “brigas de cachorros grandes”. Agora, devidamente autorizados pelo Big Dog, abanam os rabos para um acordo que, como já notaram alguns, é inferior ao obtido pelo Brasil, pois não retira do território iraniano uma única grama do urânio enriquecido a 20% e inviabiliza a produção de isótopos para fins medicinais.
Uma hipocrisia enriquecida a 100%.
domingo, 1 de dezembro de 2013
MULHERES E UMA GUERRA SURDA
Por Rosyska Darcy de Oliveira
A história das mulheres é um longo percurso de lutas contra a humilhação e a brutalidade, escrevi há 30 anos. Não pensei que voltaria a escrever. Tudo parecia indicar que a sociedade brasileira saíra da Idade da Pedra com seus Brucutus arrastando as mulheres pelos cabelos e possuindo-as no melhor estilo animal.
Ilusão. A história das mulheres continua marcada pela humilhação e a brutalidade. É o que contam os dados do Fórum Nacional de Segurança Pública: 50 mil casos de estupro no Brasil no ano de 2012.
Este número aberrante não deveria cair no esquecimento como uma má notícia entre outras. Cinquenta mil americanos morreram na Guerra do Vietnam e isso mudou a América. Aqui 50 mil mulheres são violadas por ano e a sociedade assiste em silêncio.
Segundo a pesquisa, o número de casos vem aumentando. Os estupros de fato aumentaram ou o que aumentou foi sua notificação? Se assim for, é provável é que esses números sejam apenas a ponta do iceberg.
Um caso isolado de estupro é uma tragédia que o senso comum põe na conta de algum tarado que ninguém está livre de encontrar numa rua deserta. São psicopatas que agem por repetição à semelhança dos serial killers. Requintados torturadores, desprovidos de culpa ou remorso, são descobertos e presos. Quando saem, reincidem.
Cinquenta mil casos têm outro significado. A psicopatia não explica. Configura-se uma tara social, uma sociedade que convive com a violência sexual com uma naturalidade repugnante. São milhares de estupradores que, assim como os torturadores, transitam entre nós como gente comum. Estão nas ruas, nas festas, nos clubes, lá aonde todos vão, e passam despercebidos. Estão nas famílias e nas vizinhanças onde mais frequentemente agem — suprema covardia — aproveitando-se da proximidade insuspeita com a vítima.
Dissimulam seu alto potencial de crueldade no magma de desrespeito em que se misturam machismo, piadas grosseiras, gestos obscenos, aceitos como parte da cultura. A certeza da supremacia da força física, herdaram das cavernas. O desprezo pelas mulheres, aprendem facilmente em qualquer conversa de botequim. Ninguém nasce estuprador: torna-se.
O estupro é uma mutilação psíquica que a vítima carrega para sempre. Fecundação pelo ódio e contaminação pelo vírus do HIV são sequelas possíveis desse pesadelo. O medo ronda. Quantas mais estarão em risco? Pergunte-se a qualquer mulher se, uma vez na vida, se sentiu ameaçada pela violência sexual. Há uma guerra surda contra as mulheres. Quando as guerras de verdade se declaram, o estupro como arma se pratica às claras. Na Bósnia, a “limpeza étnica”, crime contra a humanidade, se fazia violando as mulheres.
Há décadas os movimentos de mulheres denunciam essa guerra surda. Estão aí as Delegacias da Mulher e a Lei Maria da Penha. O anacrônico Código Penal, que falava de crime contra os costumes, hoje capitula o estupro como crime hediondo. Aumentaram as penas e os agravantes. A Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres criou o número 180 para acolher as denúncias e promete espalhar Casas da Mulher em todos os estados.
Dir-se-ia, no entanto, que estupradores não temem a denúncia, a lei e a Justiça. Por que será? De onde lhes vem a sensação de que o que fazem não é crime e, se descobertos fossem, ficariam impunes?
A resposta está no sentimento de poder sobre o corpo das mulheres que nossa sociedade destila como um veneno. É esse caldo de cultura, em que a violência sexual de tão banal fica invisível, que estimula e protege os agressores, realimentando a máquina de fazer monstros. Some-se a isso uma espécie de pacto de silêncio que, salvo quando os dados gritam como agora, impede que se reconheça a gravidade do problema que, na sua negação da dignidade humana, é comparável à prática da tortura.
Os governos descuidam do indispensável amparo às vítimas. Ora, se não há reparação possível, deve haver acolhimento e socorro. Em todo o país os serviços de saúde pública capazes de oferecer a possibilidade de um aborto previsto em lei são ridiculamente insuficientes para atender às consequências desse massacre.
A mesma energia com que a sociedade brasileira condena a tortura é necessária para debelar a epidemia de crueldade. Três mudanças de comportamento se impõem, imediatas: o fim da tolerância com o desrespeito às mulheres, em casa e nas ruas; a inclusão para valer da prevenção e repressão da violência sexual na agenda da segurança pública; e a expansão dos serviços de amparo às vítimas. É o mínimo que o Brasil deve às mulheres.
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
BRICS, QUE A MÍDIA NÃO VÊ, O
Por Mauro Santayana
RBA /Brasil
“A civilização é um movimento, e não uma condição. Uma viagem, e não o porto de destino.” A frase, do historiador inglês Arnold J. Toynbee, define como poucas o curso da história. Raramente percebemos a história, enquanto ela ainda está acontecendo, a cada segundo, à nossa volta. O mundo se transforma, profundamente, o tempo todo. Mas as maiores mudanças são as imperceptíveis. Aquelas que quase nunca aparecem na primeira página dos jornais, normalmente tomada por manchetes que interessam a seus donos, ou por chamadas de polícia ou futebol. Esse é o caso das notícias sobre os Brics.
Quem já ouviu Pink Floyd (Another Brick in the Wall) pode confundir o termo com brick, palavra inglesa que quer dizer tijolo. Se gostar de economia, vai lembrar que essa é uma sigla inventada em 2001 por um economista do grupo Goldman Sachs.
Mas poucas pessoas têm ideia de como o Bric vai mudar o mundo e sua própria vida nos próximos anos. Antes um termo econômico, o Brics, grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, está caminhando – aceleradamente, em termos históricos – para se transformar na aliança estratégica de alcance global que vai mudar a história no século 21.
O que juntou esses países? Para Jim O’Neill, criador do vocábulo, foi seu potencial econômico e de crescimento. Mas, para esses países, o que os aproxima é seu desejo de mudar o planeta. Dominados ou combatidos pelos Estados Unidos e pela Europa, no passado, eles pretendem desafiar a hegemonia anglo-saxônica e “ocidental”, e mostrar que outro mundo é possível, na diplomacia, na ciência, na economia, na política e na questão militar.
Três deles, Rússia, Índia e China, já são potências atômicas e espaciais. O Brasil e a África do Sul, embora não o sejam, têm indiscutível influência em suas respectivas regiões, e trabalham com a mesma filosofia. A construção de uma nova ordem mundial, mais digna e multipolar, em que haja menor desigualdade entre os países mais ricos e os que estão em desenvolvimento.
A união faz a força. O Brics sabe disso, e seus concorrentes, também. Por isso, os meios de comunicação “ocidentais” e seus servidores locais movem forte campanha contra o grupo, ressaltando pontos negativos e ocultando e desencorajando as perspectivas de unidade.
Mesmo assim, eles estão cada vez mais próximos. A cada ano, seus presidentes se reúnem. Na ONU, votam sempre juntos contra ataques ocidentais a países do Terceiro Mundo, como aconteceu no caso da Síria, há poucas semanas. Controlam 25% do território, 40% da população, 25% do PIB e mais de 50% das reservas internacionais do mundo. China e Brasil são, respectivamente, o primeiro e o terceiro maiores credores dos Estados Unidos.
Por crescerem mais que a Europa e os Estados Unidos, e terem mais reservas internacionais, os Brics querem maior poder no Banco Mundial e no FMI. Como isso lhes tem sido negado, estão criando, no próximo ano, o próprio banco, com capital inicial de US$ 100 bilhões.
No final de outubro, o Brasil – que já compra helicópteros militares russos, tem um programa conjunto de satélites de monitoramento com a China, vende aviões radares para a Índia e desenvolve mísseis com a Denel Sul-africana – foi convidado a juntar-se a russos e indianos no desenvolvimento e fabricação de um dos aviões mais avançados do mundo, o Sukhoi T-50, caça-bombardeiro invisível a radares, capaz de monitorar e atingir alvos múltiplos, no ar e em terra, a 400 quilômetros de distância.
Também em outubro, Brasília recebeu a visita do chanceler indiano Salman Khurshid, que, em conjunto com o ministro das Relações Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo, estabeleceu como meta aumentar o comércio Brasil-Índia em 50%, de US$ 10 bilhões para US$ 15 ¬bilhões, até 2015.
Na área de internet, Rússia e Índia já declararam apoio ao novo marco regulatório defendido pelo Brasil para a rede mundial. E planeja-se o Brics Cable, um cabo óptico submarino de 34 mil quilômetros que, sem passar pelos Estados Unidos ou pela Europa, ligará o Brasil à África do Sul, Índia, China e Rússia, em Vladivostok. No comércio, na cooperação para a ciê¬ncia e o ensino, na transferência de tecnologia para fins pacíficos não existem limites para os Brics.
Se você pensa um dia em visitar Miami, mandar seu filho estudar nos Estados Unidos, ou acha que seus netos vão crescer em um mundo regido pelo Tio Sam, está na hora de rever seus conceitos.
Há grande chance de que a segunda língua deles seja o mandarim. De que viajem, a passeio, para Xangai, e não para a Flórida. De que usem uma moeda Brics, e não dólar. E vivam em uma era em que não existirá mais uma única grande potência, mas seis ou sete, entre elas o Brasil. Em um mundo em que a competição geopolítica se dará, principalmente, entre os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e os que comporão outro organismo internacional, liderado pelo Brics.
Assinar:
Postagens (Atom)