segunda-feira, 2 de julho de 2012
MEU QUERIDO VLADO
Na próxima quarta-feira, amigo, você fará 75 anos. Por razões alheias à nossa vontade, não vou poder lhe dar os parabéns pessoalmente e assim, aproveito para fazer isso aqui – e contar algumas coisas que aconteceram desde a última vez que nos vimos, numa sexta-feira, 19 de outubro de 1975 – sim, há 37 anos!
Você certamente não ficou sabendo, mas no sábado seguinte, 25 de outubro, um carcereiro chegou diante da grade e chamou meu nome. Eu estava com pelo menos uma dúzia de presos na última cela de um corredor do Doi-Codi em São Paulo, o centro de tortura do regime militar. Todos vestidos com macacões verdes do exército, sem cinto e no meu caso, sem botões também. O fulano abriu a cela, colocou o capuz preto sobre a minha cabeça e começou a me guiar como um cego. Imaginei que pudesse ser uma acareação com outro preso, mais um interrogatório, nova sessão de tortura, quem sabe uma excursão pelas ruas da cidade em busca de outro companheiro. Já passara por tudo isso e por muito mais – até mesmo a insólita saída para batizar Ana, a minha filha (virou atriz), acompanhado por uma equipe com as armas enfiadas em duas sacolas de lona preta. Mas quando o sujeito tirou meu capuz, havia diante de mim uma carteira de fórmica, dessas de escola, com uma espécie de prancheta do lado direito. Sobre ela, uma pilha de papel almaço e uma caneta. Antes de me deixar ali, recebi uma ordem curta e grossa:
- Escreva tudo o que você sabe sobre Vladimir Herzog.
Embora já ganhasse a vida escrevendo há quatro anos, foi meu texto mais difícil. Quase trinta anos mais tarde, encontrei as folhas amareladas no Arquivo do Estado, quando buscava as informações para contar nossa história.
Lembro que nos conhecemos na redação da Folha de São Paulo, em março de 1975, provavelmente. Você assumira a chefia da sucursal do Opinião e queria que eu fosse um dos colaboradores. O jornalzinho era o sonho de consumo, se é que a metáfora se aplica, para os jornalistas que viam a profissão como uma trincheira de luta pela democracia. Não conseguia noticiar quase nada, barrado pela censura, mas se dispunha a fazer o que muito jornalão evitava.
Escrevi umas matérias – um punhado passou pela censura – e substituí você na direção da sucursal, durante uma viagem aos Estados Unidos. Na volta, emprestei uma casinha de praia pra você escrever o roteiro do Doramundo, aquele filme que você queria fazer e o João Batista de Andrade realizou e ficamos amigos. Mas, caramba, você nunca me contou sua história. Nem deu tempo. Fiquei sabendo em 1985, quando escrevi meu primeiro livro sobre sua história e descobri sua infância como refugiado judeu na Itália, vivendo sob nome falso, seu pai fingindo ser mudo para esconder o sotaque iugoslavo, o resto da família indo parar num campo de concentração. Aos oito anos, quando os Herzog chegaram a São Paulo e foram morar na Mooca, o Brasil vivia a abertura democrática. Eu tinha seis anos quando você se preparava para o vestibular e fez um teste no jornal O Estado de S. Paulo. Começou a estudar filosofia, mas já tinha mergulhado no jornalismo. Integrou a equipe pioneira que implantou a sucursal de Brasília. No final de 1962, conheceu Clarice, com quem se casou pouco antes do golpe de 1964. Em 65, com uma bolsa de estudos, você foi trabalhar na BBC e Clarice o seguiu seis meses depois.
Em setembro de 1975, você se tornou diretor de jornalismo da TV Cultura e teve a coragem de me transformar em chefe de reportagem (eu tinha 23 anos, lembra?). Bom, o resto da história, a gente conhece: fomos alvejados por uma campanha destinada a abater o governador Paulo Egydio Martins e, por tabela, o general Ernesto Geisel, que era presidente. Campanha facilitada pela repressão ao Partido Comunista, onde nós dois militávamos, em posições secundárias e acreditando que era um caminho para reconquistar a democracia e construir um Brasil socialista e livre.
Naquele sábado, 25 de outubro, os militares do Doi-Codi reuniram os jornalistas que estavam presos e nos disseram que você tinha se suicidado e que era agente da KGB! Ninguém aceitou a ideia e para provar que choque não mata ninguém, me fizeram acionar a máquina chamada pimentinha com um torturador segurando os fios. No dia seguinte, fomos soltos temporariamente para ir ao seu enterro. Tinha muita gente, todos chocados.
Voltamos ao Doi-Codi e dali para o DOPS, onde ouvimos os policiais treinando tiro para reprimir o culto ecumênico que aconteceu na catedral da Sé. Primeira grande manifestação contra a tortura, resultado da ação de dom Paulo Arns, do rabino Henry Sobbel e do reverendo James Wright, com respaldo do Sindicato dos Jornalistas, de estudantes e políticos da oposição.
Depois disso, amigo, muita coisa aconteceu. Um inquérito armado pelo governo e manipulado concluiu que você se matara, apesar de todas os depoimentos em contrário. O general Geisel demitiu o comandante do II Exército quando outro comunista desimportante, o operário Manoel Fiel Filho foi “suicidado” no Doi-Codi. O problema do presidente era a desobediência, não a tortura.
Clarice entrou com uma ação na Justiça e provou que o Estado era responsável pela sua morte. Não pediu indenização, só justiça. Houve a anistia, os exilados voltaram e com eles, as eleições diretas para governador – a oposição ganhou em dez estados. A campanha das diretas parou o país e se não acabou com o colégio eleitoral, garantiu a eleição indireta do Tancredo Neves, que morreu antes da posse. José Sarney virou presidente, fez a Constituinte e em 1989, elegemos um certo Fernando Collor, de que você nunca ouviu falar. Acabou saindo pelo impeachment.
Fernando Henrique, que era do conselho editorial do Opinião virou presidente, foi reeleito e passou a faixa para o Lula (lembra?) que também governou oito anos e foi sucedido por uma ex-guerrilheira, Dilma Roussef, que afinal criou a Comissão da Verdade para apurar casos como o seu e tantos outros menos conhecidos.
Seu filho Ivo criou o Instituto Vladimir Herzog, para valorizar a liberdade de imprensa e os direitos humanos. Está fazendo um belo trabalho de resgate da história dos jornais alternativos e uma programação de festa pelos seus 75 anos. Quando lembro dele e do André garotinhos, me sinto meio velho. André trabalha em Washington no Banco Mundial com políticas públicas para Ásia e África. Clarice vai muito bem, obrigado.
O Brasil também vai bem. Não tanto quanto sonhamos, mas muito melhor do que no tempo em que convivemos. A democracia tem seu valor, apesar (ou por causa) das denúncias e das CPIs, que não existiam na ditadura. Ah, vivo parte do tempo em Florianópolis. Escrevi uns livros, fiz uns documentários e fui presidente da TV Cultura. Mas um dia conto como foi essa experiência.
Abraços, saudades e parabéns
Paulo Markun
sábado, 30 de junho de 2012
A TORTURA NO BANCO DOS RÉUS 03
Em julho de 2011 postamos aqui no Blog dois textos, “A Tortura no Banco dos Réus 01 e 02”, sobre o caso envolvendo a morte sob tortura do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino e do julgamento do coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Acompanhamos o julgamento e informamos abaixo o seu resultado:
A Justiça paulista condenou, em primeira instância, o coronel reformado do Exército e ex-comandante do DOI-Codi, Carlos Alberto Brilhante Ustra, a indenizar a companheira e a irmã do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto em 1971.
Cada uma delas receberá R$ 50 mil e Ustra terá ainda de arcar com o pagamento de custos e despesas processuais.
Merlino morreu quando estava preso no DOI-Codi. À época, a versão oficial oferecida pelos agentes do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) foi de que ele teria se suicidado enquanto era transportado para o Rio Grande do Sul, para lá reconhecer colegas militantes de esquerda, se jogando à frente de um carro que trafegava pela rodovia.
As condições do corpo da vítima e relatos de outros presos políticos mostraram, no entanto, que Merlino fora severamente espancado.
Merlino foi membro do Partido Operário Comunista (POC) e da Quarta Internacional. Foi preso em 15 de julho de 1971 e levado para a sede do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Na época, o DOI-Codi era comandado por Ustra, onde Merlino foi torturado por cerca de 24 horas e morto.
Na sentença, a juíza justificou a decisão. “Evidentes os excessos cometidos pelo requerido [Brilhante Ustra], diante dos depoimentos no sentido de que, na maior parte das vezes, o requerido participava das sessões de tortura e, inclusive, dirigia e calibrava intensidade e duração dos golpes e as várias opções de instrumentos utilizados”.
“Mesmo que assim não fosse, na qualidade de comandante daquela unidade militar, não é minimamente crível que o requerido não conhecesse a dinâmica do trabalho e a brutalidade do tratamento dispensado aos presos políticos. É o quanto basta para reconhecer a culpa do requerido pelos sofrimentos infligidos a Luiz Eduardo e pela morte dele que se seguiu”, acrescentou.
De: Agência Brasil / Notícias
Mais do que qualquer indenização, a família buscava o reconhecimento da morte sob tortura que foi durante todos esses anos encoberta, pelo suposto suicídio e ainda que Brilhante Ustra fosse reconhecido como torturador.
Nada trará de volta Luiz Eduardo e nenhum outro jovem torturado até a morte pela Ditadura Militar, mas é necessário fazer justiça à sua Memória.
Quando preso, em casa pelo DOI-Codi, ele disse à sua mãe que voltaria logo. Não o deixaram voltar.
Mas, volta agora a sua história, como herança dessa geração e como um símbolo contra a tirania.
Prof. Péricles
quarta-feira, 27 de junho de 2012
O AUSCHWITZ DA DITADURA BRASILEIRA
A atual história política do Brasil é pródiga em exemplos de que os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de corpos que a ditadura militar cometeu acabam em boa parte denunciados por aqueles que fizeram o trabalho sujo – é o porão a implodir o arranha-céu do horror que se construiu com o golpe de 1964 e perdurou até a redemocratização em 1985.
Foi assim com os cadáveres de guerrilheiros que se opuseram ao regime de exceção, enterrados em cemitérios clandestinos – os agentes os sepultavam com nomes frios, mas escreviam nos laudos, com letra miúda, os nomes verdadeiros. Foi assim também nos próprios tribunais militares nos quais juízes consignavam que o réu fora torturado, embora não movessem um dedo contra isso. Pôr tudo no papel e fazer valer o que está escrito faz parte da tradição cartorial luso-brasileira.
O livro “Memórias de uma Guerra Suja”, que acaba de ser lançado, confirma em um ponto essa regra ao trazer na primeira pessoa o depoimento inédito, surpreendente e estarrecedor do ex-delegado da repressão Cláudio Guerra. Ele revela que houve no Brasil uma espécie de campo de Auschwitz (referência ao mais famoso campo nazista de extermínio e cremação de judeus) onde corpos de guerrilheiros mortos sob tortura em São Paulo e no Rio e Janeiro foram incinerados.
Em outro ponto, no entanto, o da tradição de que tudo se escreve, Guerra, 71 anos, quebra a regra: não anotou absolutamente nada e, assim, a denúncia que faz se baseia em sua memória e em sua palavra. “Ele é o mais importante dos agentes da repressão que falaram até agora, e, de fato, tem informação”, disse à ISTOÉ o ex-deputado e um dos mais atuantes advogados de ex-presos políticos Luiz Eduardo Greenhalgh. “E esse também é o momento mais importante para alguém falar porque a Comissão da Verdade está prestes a funcionar.”
Há quase quatro décadas familiares e organizações de direitos humanos trabalham para descobrir os corpos, por exemplo, de David Capistrano da Costa, dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), e Ana Rosa Kucinski Silva, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN). É o ex-delegado quem agora afirma: “Não adianta procurar, eles foram incinerados.” Por quem? Pelo próprio depoente.
O mesmo fim, segundo o livro de autoria dos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, tiveram, entre outros, os cadáveres de Wilson Silva, João Massena Mello, José Roman e Joaquim Cerveira.
O forno do Auschwitz da ditadura, de acordo com Guerra, funcionou a partir de 1973 na usina de açúcar Cambahyba, com a anuência de seu ex-proprietário, o então vice-governador do Rio de Janeiro Heli Ribeiro. Localizava-se em Campos dos Goytacazes. Diz Guerra: “Eu me lembro muito bem de um casal, Ana Rosa Kucinski Silva e Wilson Silva (...) Eu e o sargento Levy, do DOI... fomos levar seus corpos à usina. A mulher apresentava muitas marcas de mordidas pelo corpo, talvez por ter sido violentada sexualmente. Wilson não tinha as unhas da mão direita. Tudo leva a crer que tinham sido torturados.”
Sobre Capistrano e Massena, assim está na obra: “Eu me lembro bem de dois senhores que peguei na Casa da Morte e levei para a incineração na usina. Um deles me marcou muito, porque lhe haviam arrancado a mão direita (...) resultado de tortura impiedosa.
Dirigente histórico do PCB e ex-combatente da Resistência francesa na Segunda Guerra Mundial, Capistrano desapareceu nas mãos da repressão em 1974. Sabe-se concretamente que foi preso no centro de São Paulo (rua 24 de Maio) e hipoteticamente que teria sido morto no Dops, ou no Manicômio Judiciário, ou ainda no Hospital Juqueri (ambos na cidade de Franco da Rocha). Reforça a tese de incineração apresentada por Guerra o fato de o corpo ter sido exaustivamente procurado e nunca localizado. Enfraquece-a, no entanto, outro ponto: o fato de Guerra (assim como informantes anteriores) não apresentar nenhuma prova além de dizer “era David Capistrano”.
“Todas as informações devem ser levadas em consideração, mas elas têm de ser rigorosamente investigadas”, diz Greenhalgh. “Muitos já deram contra-informações.” “Esse Cláudio Guerra é um doido”, disse Maria Cecília Gomes, filha do ex-proprietário da usina. “Nossa família vai acionar a Justiça contra esse ex-delegado. Vai ter de provar o que falou.”
Irmão de Ana Rosa, o escritor Bernardo Kucinski chega a considerar que o objetivo de Guerra pode ser o de “afrouxar as buscas pelos restos mortais dos desaparecidos”.
Se Guerra presta um serviço ou desserviço à história, isso o futuro dirá. No presente, porém, as suas revelações têm de ser consideradas. Isso no plano social. No campo individual, elas até podem aplacar a sua consciência, como ele próprio justifica, uma vez que se tornou evangélico quando esteve preso por ligação com o crime organizado no Espírito Santo, mas não amenizará a possibilidade de ser imediatamente processado pelo Ministério Público por ocultação e vilipêndio de cadáver – apenas a sua palavra de que não adianta mais procurar pelos corpos de Ana Rosa e Capistrano não o livra de responder pelo crime imprescritível de seqüestro continuado, como determinou o STF.
“O livro trata de pessoas incineradas. Depois da tortura, não sobrou mais nada. É terrível”, disse Marcelo Netto. “Foram três anos para escrevê-lo, entre convencimento, entrevistas e redação.”
No atual governo federal leram o livro em primeira mão a presidenta da República, Dilma Rousseff, a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, e o ministro da Justiça,José Eduardo Cardozo. Sabe-se que a presidenta o considerou uma peça histórica importante para o estabelecimento da verdade sobre a morte e o desaparecimento de cidadãos durante o mais obscurantista período da vida política brasileira.
Isto é – Brasil Edição 2217
Antonio Carlos Prado
segunda-feira, 25 de junho de 2012
NÃO HÁ ESPAÇO PARA ILUSÃO
O que mais incomoda nessa aliança em São Paulo, entre o PT e o Maluf, é que, ficamos todos os que acreditam em ideais e em valores outros que não apenas eleitorais, nos sentindo assim, como o marido traído, todos sabiam, menos nós.
É como se o sorriso do Maluf na foto com o Lula fosse diretamente pra nós. Sei, sei que isso é meio paranóico, mas paranóia, nessas horas, é o menor dos problemas.
Sim, nós sabemos que sem alianças nenhuma proposta chega ao poder num país tão grande e de tão variados interesses como o Brasil. Claro, compreendemos a necessidade de uma base aliada para governar. Isso tudo é muito lógico. Mas, é mesmo necessário transar sem prazer?
Sou de uma geração que tinha ideais. Meninos acreditem, isso existiu um dia!
Dizíamos que o capitalismo poderia corromper tudo, comprar tudo, mas jamais compraria nosso idealismo.
Acreditávamos na pureza da construção de uma sociedade mais justa. Sim, sabíamos que uma revolução não se faz indolor e que faz muitas vítimas em sua pavimentação, mas nunca, nunca mesmo, poderíamos imaginar que alguns dos mortos fossem nossos sonhos.
Jamais poderíamos imaginar que ao construir a ponte que ligaria o presente egoísta a um futuro mais humano e igualitário seríamos num dado momento, substituídos na construção por “operários mais hábeis”.
- Saiam daqui amadores, deixem os profissionais trabalhar! Então, ocuparíamos a margem da estrada vendo os “profissionais” negociarem cargos, títulos, poder e alianças, tudo para justificar o... o que mesmo?
Tudo pela vitória eleitoral. Tudo pelo poder!
Como se o poder político seja a única forma de se construir um mundo melhor. Como se o poder conquistado dessa maneira permita que algum sonho sobreviva. Como se para defender os loucos devêssemos enlouquecer.
Quando nossos sonhos tornam-se objeto de negociação, o sonho já acabou, pois um sonho corrompido é pior do que o pior dos pesadelos.
Foi justamente essa argumentação de pragmatismo que afastou os sonhadores e levou Stalim ao poder construindo a pior das ditaduras.
Mas, vai ver, estamos levando tudo muito a sério, e sonhos, sonhadores e ideais, sejam coisas ultrapassadas, definitivamente enterradas, no passado.
Num mundo de alianças tão espúrias, não há espaço para ilusão.
Prof. Péricles
quarta-feira, 20 de junho de 2012
TANCREDO NEVES E A IRONIA
Certos acontecimentos na história do Brasil ocorrem com tamanha dramaticidade e ironia, que, às vezes, parece mais fruto da fértil imaginação de um escritor do que fato da vida real.
Até faz lembrar uma brincadeira dos tempos de rapaz que fazíamos com os amigos. A gente começava uma estória (quase sempre o ponto de partida era de algo real) e cada um, em sua vez, conforme a imaginação seguia complementando a narração do anterior, até a conclusão da estória, que até o fim era desconhecido para nós mesmos, os “autores”.
Pois uma dessas brincadeiras fanfarronas da história oficial brasileira é de Tancredo Neves e o final da Ditadura Militar.
Depois de 10 anos de “reabertura” o Brasil ansiava por novos tempos de democracia. A crise econômica era tamanha que os milicos eram os primeiros a querer ir embora. Como, porém, estava valendo uma coisa chamada “Constituição de 1966”, a eleição, para escolher o substituto do último General, o João Figueiredo, seria por eleição indireta. Ou seja, aquele joguinho de cartas marcadas em que os “eleitores” são os deputados e senadores, somente, sem voto do povo.
Portanto, o primeiro presidente pós ditadura seria escolhido no conchavo do Congresso Nacional, onde a ARENA com novo nome de PDS tinha, naturalmente, a maioria.
Um Congressista, Dante de Oliveira, propôs uma emenda a “Constituição” instituindo o voto direto (do povo). Essa emenda entraria para a história com o nome de Emenda Dante de Oliveira.
Como falamos anteriormente, o PDS tinha a maioria no Congresso, e, raciocine, por que eles iriam aceitar tal emenda que tiraria deles o poder de escolher o presidente?
Iniciou-se então, de forma quase espontânea, um dos mais belos movimentos de nossa história, a Campanha “Diretas Já”.
Com o objetivo de sensibilizar os congressistas, essa Campanha, que começou no norte e terminou em Porto Alegre, com fecho de ouro em São Paulo, levou às ruas milhões de brasileiros.
Para quem estava acostumado a fazer política clandestina, ver gente de todas as idades participando de ato político, com bandeiras nas mãos e palavras de ordem, foi comovente.
Mas... o Congresso foi mais insensível do que poderia se imaginar. E contrariando aquela imensa massa que pedia a aprovação, a Emenda Dante de Oliveira foi derrotada.
Restava a luta dentro do Congresso para impedir que depois de Figueiredo alguém “do lado deles”, isso é, alguém do PDS que sempre apoiou a ditadura vencesse. Mas era difícil pela maioria folgada que esse mesmo PDS detinha no Colégio Eleitoral.
O “lado de lá” formalizou a candidatura Paulo Maluf para Presidente. O PMDB unido a todos os outros partidos de oposição formou a Aliança Democrática e apontou como candidato, Tancredo Neves.
Mineiro de São João Del Rei, 75 anos, ex Ministro da Justiça e Negócios Interiores de Getúlio Vargas, ex-deputado federal, ex PSD (de Juscelino), ex-senador, ex-governador de Minas Gerais, sempre identificado com o MDB na oposição consentida à Ditadura, Tancredo Neves passaria a ser a esperança nacional de acabar com o império da ARENA travestida de PDS. O país começou a amar aquele velhinho.
Em 15 de janeiro de 1985 o Congresso Nacional se tornou Colégio Eleitoral e se processou a eleição indireta. Ao cidadão brasileiro, mais uma vez restou torcer das arquibancadas. A eleição foi transmitida para todo o país que literalmente, parou. No final, a vitória. A Aliança Liberal apoiada por parte do PDS que debandara para fundar o PFL venceu. Emocionado, Tancerdo Neves em seu primeiro pronunciamento como presidente eleito bradou “Essa foi a última eleição indireta do Brasil”.
Lágrimas, emoção, desabafos. Era o fim de um pesadelo e o início de novos tempos. Tancredo Neves derrotava Paulo Maluf e tudo aquilo que Maluf representava.
É aí que entra a ironia.
Eleito em 15 de janeiro Tancredo deveria assumir 14 de março. Esse deveria ser o final feliz que todos esperavam. Mas não foi.
Na manhã desse dia que era para ser de festa, os brasileiros foram sacudidos com uma notícia surreal: Tancredo Neves passara mal durante a noite e tivera que ser baixado às pressas no Hospital de Base, de Brasília.
Não parecia ser verdade. Não podia ser verdade. Só podia ser uma sacanagem do destino.
E que sacanagem. Naquele dia José Sarney (uma exigência do PFL para o apoio decisivo à Aliança Democrática) assumiu como vice e como presidente em exercício.
Por cinco semanas o Brasil entrou numa angustiosa hipocondria. Todos se sentiam um pouco doentes e, toda a nação, ao final do dia, queria saber notícias vindas de Boletins Médicos chatos e lacônicos.
No domingo, 21 de abril de 1985, logo após o final do Fantástico da Rede Globo, entrava no ar a cara bolachuda já conhecida de Antonio Brito, porta-voz oficial da presidência, para anunciar nos microfones, a morte de Tancredo Neves, com diagnóstico de diverticulite.
Depois de 20 anos. Depois de uma incrível campanha frustrada. Depois de tantas esperanças de redemocratização, morria aquele que representava a esperança derradeira do retorno a normalidade. Sobrava, para exercer o mandato, José Sarney, extremamente identificado com o coronelismo e com a própria ditadura.
Então, diga-me, parece ou não parece que anjos bêbados, estarrados em alguma nuvem secreta, fizeram a brincadeira do final surpresa que ninguém, nem mesmo eles, esperavam?
Prof. Péricles
Até faz lembrar uma brincadeira dos tempos de rapaz que fazíamos com os amigos. A gente começava uma estória (quase sempre o ponto de partida era de algo real) e cada um, em sua vez, conforme a imaginação seguia complementando a narração do anterior, até a conclusão da estória, que até o fim era desconhecido para nós mesmos, os “autores”.
Pois uma dessas brincadeiras fanfarronas da história oficial brasileira é de Tancredo Neves e o final da Ditadura Militar.
Depois de 10 anos de “reabertura” o Brasil ansiava por novos tempos de democracia. A crise econômica era tamanha que os milicos eram os primeiros a querer ir embora. Como, porém, estava valendo uma coisa chamada “Constituição de 1966”, a eleição, para escolher o substituto do último General, o João Figueiredo, seria por eleição indireta. Ou seja, aquele joguinho de cartas marcadas em que os “eleitores” são os deputados e senadores, somente, sem voto do povo.
Portanto, o primeiro presidente pós ditadura seria escolhido no conchavo do Congresso Nacional, onde a ARENA com novo nome de PDS tinha, naturalmente, a maioria.
Um Congressista, Dante de Oliveira, propôs uma emenda a “Constituição” instituindo o voto direto (do povo). Essa emenda entraria para a história com o nome de Emenda Dante de Oliveira.
Como falamos anteriormente, o PDS tinha a maioria no Congresso, e, raciocine, por que eles iriam aceitar tal emenda que tiraria deles o poder de escolher o presidente?
Iniciou-se então, de forma quase espontânea, um dos mais belos movimentos de nossa história, a Campanha “Diretas Já”.
Com o objetivo de sensibilizar os congressistas, essa Campanha, que começou no norte e terminou em Porto Alegre, com fecho de ouro em São Paulo, levou às ruas milhões de brasileiros.
Para quem estava acostumado a fazer política clandestina, ver gente de todas as idades participando de ato político, com bandeiras nas mãos e palavras de ordem, foi comovente.
Mas... o Congresso foi mais insensível do que poderia se imaginar. E contrariando aquela imensa massa que pedia a aprovação, a Emenda Dante de Oliveira foi derrotada.
Restava a luta dentro do Congresso para impedir que depois de Figueiredo alguém “do lado deles”, isso é, alguém do PDS que sempre apoiou a ditadura vencesse. Mas era difícil pela maioria folgada que esse mesmo PDS detinha no Colégio Eleitoral.
O “lado de lá” formalizou a candidatura Paulo Maluf para Presidente. O PMDB unido a todos os outros partidos de oposição formou a Aliança Democrática e apontou como candidato, Tancredo Neves.
Mineiro de São João Del Rei, 75 anos, ex Ministro da Justiça e Negócios Interiores de Getúlio Vargas, ex-deputado federal, ex PSD (de Juscelino), ex-senador, ex-governador de Minas Gerais, sempre identificado com o MDB na oposição consentida à Ditadura, Tancredo Neves passaria a ser a esperança nacional de acabar com o império da ARENA travestida de PDS. O país começou a amar aquele velhinho.
Em 15 de janeiro de 1985 o Congresso Nacional se tornou Colégio Eleitoral e se processou a eleição indireta. Ao cidadão brasileiro, mais uma vez restou torcer das arquibancadas. A eleição foi transmitida para todo o país que literalmente, parou. No final, a vitória. A Aliança Liberal apoiada por parte do PDS que debandara para fundar o PFL venceu. Emocionado, Tancerdo Neves em seu primeiro pronunciamento como presidente eleito bradou “Essa foi a última eleição indireta do Brasil”.
Lágrimas, emoção, desabafos. Era o fim de um pesadelo e o início de novos tempos. Tancredo Neves derrotava Paulo Maluf e tudo aquilo que Maluf representava.
É aí que entra a ironia.
Eleito em 15 de janeiro Tancredo deveria assumir 14 de março. Esse deveria ser o final feliz que todos esperavam. Mas não foi.
Na manhã desse dia que era para ser de festa, os brasileiros foram sacudidos com uma notícia surreal: Tancredo Neves passara mal durante a noite e tivera que ser baixado às pressas no Hospital de Base, de Brasília.
Não parecia ser verdade. Não podia ser verdade. Só podia ser uma sacanagem do destino.
E que sacanagem. Naquele dia José Sarney (uma exigência do PFL para o apoio decisivo à Aliança Democrática) assumiu como vice e como presidente em exercício.
Por cinco semanas o Brasil entrou numa angustiosa hipocondria. Todos se sentiam um pouco doentes e, toda a nação, ao final do dia, queria saber notícias vindas de Boletins Médicos chatos e lacônicos.
No domingo, 21 de abril de 1985, logo após o final do Fantástico da Rede Globo, entrava no ar a cara bolachuda já conhecida de Antonio Brito, porta-voz oficial da presidência, para anunciar nos microfones, a morte de Tancredo Neves, com diagnóstico de diverticulite.
Depois de 20 anos. Depois de uma incrível campanha frustrada. Depois de tantas esperanças de redemocratização, morria aquele que representava a esperança derradeira do retorno a normalidade. Sobrava, para exercer o mandato, José Sarney, extremamente identificado com o coronelismo e com a própria ditadura.
Então, diga-me, parece ou não parece que anjos bêbados, estarrados em alguma nuvem secreta, fizeram a brincadeira do final surpresa que ninguém, nem mesmo eles, esperavam?
Prof. Péricles
domingo, 17 de junho de 2012
UM SILÊNCIO QUE GRITAVA
O assassinato do padre Antônio Henrique Pereira, ocorrido em maio de 1969, vai abrir a pauta das investigações da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, instalada na semana passada para apurar denúncias e informações sobre pernambucanos mortos e desaparecidos durante o regime de exceção.
Auxiliar direto de Dom Hélder Câmara – que, à época os militares rotulavam de arcebispo vermelho –, o padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto foi torturado até a morte, no Recife, entre a noite e a madrugada de 26 e 27 de maio de 1969. O crime, nunca esclarecido até a prescrição do processo aberto para apurar os fatos, teve o objetivo claramente político de tentar barrar, através da violência física, o arcebispo nas suas ações e pregações em defesa da liberdade.
A macabra lógica dos torturadores era esta: se a eliminação do próprio Dom Hélder não era recomendável porque repercutiria internacionalmente, deixando o governo brasileiro em situação delicada, o caminho era o assassinato de um auxiliar direto da Arquidiocese. Desta forma, deduziam eles, o arcebispo recuaria e o crime não teria grande repercussão porque a vítima, digamos assim, era “menos importante”.
Responsável pelo setor da Arquidiocese de Olinda e Recife que prestava assistência à juventude, o padre Henrique mantinha encontros inclusive com estudantes cassados e, em várias ocasiões, recebeu ligações telefônicas com ameaças de morte. A maioria delas partidas da organização denominada Comando de Caça aos Comunistas (CCC). O padre não se curvou às ameaças e pagou um alto preço por isso.
O padre Henrique foi seqüestrado na noite de 26 de maio, no bairro de Parnamirim, depois de participar de uma reunião com um grupo de jovens católicos. De acordo com uma testemunha, ele acabava de sair do local do encontro, quando foi abordado por três homens armados que o levaram em um veículo de marca Rural, de cor verde e branca. Às 10 horas do dia seguinte, o corpo seria encontrado num matagal da Cidade Universitária.
À época, o governo ainda não havia instituído formalmente a censura à imprensa, mas, mesmo assim, os jornais foram proibidos de noticiar o assassinato do padre. A notícia só foi dada pelo Boletim Arquidiocesano (um informativo mimeografado da Igreja) e lida pelos padres de todas as paróquias recifenses. Mesmo sem notícias na imprensa, cerca de 20 mil pessoas acompanharam o enterro, numa caminhada entre igreja do Espinheiro e o cemitério da Várzea.
O assassinato do padre Henrique não funcionou para calar Dom Hélder Câmara, que continuou denunciando as injustiças sociais e lutando por liberdade, mas destruiu praticamente toda a família do sacerdote. Em depoimento ao extinto semanário recifense Jornal da Cidade, a 24/07/1981, dona Isaíras Pereira da Silva, mãe do padre, narraria o que se seguiu ao crime:
“Depois de assassinarem meu filho, começaram as perseguições. Um dia depois do enterro, o meu marido foi preso e, sob ameaça de tortura, foi obrigado a relatar nomes de pessoas que vinham aqui em casa e que eram amigas de Antônio Henrique.
Adolfo, meu segundo filho, que na época havia sido aprovado no concurso de oficial da Polícia Militar, passou a exercer dentro da PM funções de servente, sendo depois transferido para a Polícia Rodoviária, coisa que não tinha nada a ver com o concurso a que foi submetido. Fizeram o possível para sujar o seu nome, até que o ex-agente Wilson Maciel o envolveu com uns roubos de imagens sacras. Passou 11 meses preso e foi absolvido por falta de provas.
Pouco tempo depois, um outro roubo de objetos sacros ocorrido em Natal foi motivo para que o meu filho ficasse mais um tempo preso. No terceiro, o da imagem do Carmo em 1979, Wilson Maciel tenta culpá-lo e, como não consegue, o ameaçou de morte. Por conta disso, teve que viver foragido com a mulher e filhos.
Justo Henrique, um outro filho, foi preso três vezes como subversivo, porque na época era seminarista e isso tinha muito a ver com o irmão. Tanto fizeram que atualmente ele vive no exterior e, por medida de segurança, não mantemos nenhuma comunicação.
Existe um quarto filho que usa nome falso por ter fugido da prisão. Sofreu torturas e, para castigá-lo, eles disseram que meu filho andava espalhando por aí que ia se vingar. Meu marido, com os aperreios, morreu com uma úlcera gástrica. E eu, eu sou o palhaço da história. Sei quem matou meu filho e nada posso fazer.”
Em 1975, o Jornal da Cidade, veículo recifense da chamada imprensa alternativa, reconstituiu o episódio assim:
"A corda aperta-lhe o pescoço e o homem dobra as pernas, semi-asfixiado e cai de joelhos. Uma pancada de faca ou canivete no rosto e o sangue escorre, grosso, molhando o dorso nu e as calças.
Os vultos, ao seu redor, começam a se tornar ainda mais difusos e ele sente um impacto na face e, certamente, não sente o segundo, à queima-roupa, pouco acima da orelha. Dois tiros de mestre, convergindo para um só ponto do cérebro. O homem estende-se em meio à pequena clareira aberta no matagal e, nos últimos estertores da morte, agarra, com a mão direita, crispada, um tufo de capim.
Passava da primeira hora da madrugada de 27 de maio de 1969 e não era chegada, ainda, a terceira hora. Os olhos do homem estavam abertos, como abertos e cheio de espanto estavam os olhos do vigia Sérgio Miranda da Silva, quando o encontrou, estirado no chão, às seis e meia da manhã.
Antes das dez, o corpo estava identificado: era do padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto, 28 anos de idade, visto com vida, pela última vez, por uma testemunha, quando era obrigado a entrar numa rural verde e branca.
Em 1989, numa entrevista para a emissora de televisão estatal de Pernambuco, Dom Hélder Câmara revelaria que, além de assassinar o Padre Henrique, a ditadura militar também proibiu toda e qualquer manifestação de protesto contra aquela violência:
- Quando nós chegávamos ao cemitério, eu recebi um aviso de que, se no cemitério houvesse a menor palavra contra os militares, a palavra de ordem era reagir de vez. Aí, quando terminou o enterro, eu disse: meus irmãos, tudo o que nós poderíamos fazer aqui na terra pelo nosso irmão Padre Henrique, nós já fizemos. Vamos rezar mais um Pai Nosso e, depois, vamos fazer uma experiência que nunca foi feita aqui em nossa terra: vamos oferecer a homenagem do silêncio, vamos sair do cemitério sem uma palavra, silêncio profundo!... Nunca eu ouvi um silêncio tão impressionante. Era um silêncio que gritava.
Por Sérgio Montenegro Filho (smontenegrofilho@gmail.com)
Auxiliar direto de Dom Hélder Câmara – que, à época os militares rotulavam de arcebispo vermelho –, o padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto foi torturado até a morte, no Recife, entre a noite e a madrugada de 26 e 27 de maio de 1969. O crime, nunca esclarecido até a prescrição do processo aberto para apurar os fatos, teve o objetivo claramente político de tentar barrar, através da violência física, o arcebispo nas suas ações e pregações em defesa da liberdade.
A macabra lógica dos torturadores era esta: se a eliminação do próprio Dom Hélder não era recomendável porque repercutiria internacionalmente, deixando o governo brasileiro em situação delicada, o caminho era o assassinato de um auxiliar direto da Arquidiocese. Desta forma, deduziam eles, o arcebispo recuaria e o crime não teria grande repercussão porque a vítima, digamos assim, era “menos importante”.
Responsável pelo setor da Arquidiocese de Olinda e Recife que prestava assistência à juventude, o padre Henrique mantinha encontros inclusive com estudantes cassados e, em várias ocasiões, recebeu ligações telefônicas com ameaças de morte. A maioria delas partidas da organização denominada Comando de Caça aos Comunistas (CCC). O padre não se curvou às ameaças e pagou um alto preço por isso.
O padre Henrique foi seqüestrado na noite de 26 de maio, no bairro de Parnamirim, depois de participar de uma reunião com um grupo de jovens católicos. De acordo com uma testemunha, ele acabava de sair do local do encontro, quando foi abordado por três homens armados que o levaram em um veículo de marca Rural, de cor verde e branca. Às 10 horas do dia seguinte, o corpo seria encontrado num matagal da Cidade Universitária.
À época, o governo ainda não havia instituído formalmente a censura à imprensa, mas, mesmo assim, os jornais foram proibidos de noticiar o assassinato do padre. A notícia só foi dada pelo Boletim Arquidiocesano (um informativo mimeografado da Igreja) e lida pelos padres de todas as paróquias recifenses. Mesmo sem notícias na imprensa, cerca de 20 mil pessoas acompanharam o enterro, numa caminhada entre igreja do Espinheiro e o cemitério da Várzea.
O assassinato do padre Henrique não funcionou para calar Dom Hélder Câmara, que continuou denunciando as injustiças sociais e lutando por liberdade, mas destruiu praticamente toda a família do sacerdote. Em depoimento ao extinto semanário recifense Jornal da Cidade, a 24/07/1981, dona Isaíras Pereira da Silva, mãe do padre, narraria o que se seguiu ao crime:
“Depois de assassinarem meu filho, começaram as perseguições. Um dia depois do enterro, o meu marido foi preso e, sob ameaça de tortura, foi obrigado a relatar nomes de pessoas que vinham aqui em casa e que eram amigas de Antônio Henrique.
Adolfo, meu segundo filho, que na época havia sido aprovado no concurso de oficial da Polícia Militar, passou a exercer dentro da PM funções de servente, sendo depois transferido para a Polícia Rodoviária, coisa que não tinha nada a ver com o concurso a que foi submetido. Fizeram o possível para sujar o seu nome, até que o ex-agente Wilson Maciel o envolveu com uns roubos de imagens sacras. Passou 11 meses preso e foi absolvido por falta de provas.
Pouco tempo depois, um outro roubo de objetos sacros ocorrido em Natal foi motivo para que o meu filho ficasse mais um tempo preso. No terceiro, o da imagem do Carmo em 1979, Wilson Maciel tenta culpá-lo e, como não consegue, o ameaçou de morte. Por conta disso, teve que viver foragido com a mulher e filhos.
Justo Henrique, um outro filho, foi preso três vezes como subversivo, porque na época era seminarista e isso tinha muito a ver com o irmão. Tanto fizeram que atualmente ele vive no exterior e, por medida de segurança, não mantemos nenhuma comunicação.
Existe um quarto filho que usa nome falso por ter fugido da prisão. Sofreu torturas e, para castigá-lo, eles disseram que meu filho andava espalhando por aí que ia se vingar. Meu marido, com os aperreios, morreu com uma úlcera gástrica. E eu, eu sou o palhaço da história. Sei quem matou meu filho e nada posso fazer.”
Em 1975, o Jornal da Cidade, veículo recifense da chamada imprensa alternativa, reconstituiu o episódio assim:
"A corda aperta-lhe o pescoço e o homem dobra as pernas, semi-asfixiado e cai de joelhos. Uma pancada de faca ou canivete no rosto e o sangue escorre, grosso, molhando o dorso nu e as calças.
Os vultos, ao seu redor, começam a se tornar ainda mais difusos e ele sente um impacto na face e, certamente, não sente o segundo, à queima-roupa, pouco acima da orelha. Dois tiros de mestre, convergindo para um só ponto do cérebro. O homem estende-se em meio à pequena clareira aberta no matagal e, nos últimos estertores da morte, agarra, com a mão direita, crispada, um tufo de capim.
Passava da primeira hora da madrugada de 27 de maio de 1969 e não era chegada, ainda, a terceira hora. Os olhos do homem estavam abertos, como abertos e cheio de espanto estavam os olhos do vigia Sérgio Miranda da Silva, quando o encontrou, estirado no chão, às seis e meia da manhã.
Antes das dez, o corpo estava identificado: era do padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto, 28 anos de idade, visto com vida, pela última vez, por uma testemunha, quando era obrigado a entrar numa rural verde e branca.
Em 1989, numa entrevista para a emissora de televisão estatal de Pernambuco, Dom Hélder Câmara revelaria que, além de assassinar o Padre Henrique, a ditadura militar também proibiu toda e qualquer manifestação de protesto contra aquela violência:
- Quando nós chegávamos ao cemitério, eu recebi um aviso de que, se no cemitério houvesse a menor palavra contra os militares, a palavra de ordem era reagir de vez. Aí, quando terminou o enterro, eu disse: meus irmãos, tudo o que nós poderíamos fazer aqui na terra pelo nosso irmão Padre Henrique, nós já fizemos. Vamos rezar mais um Pai Nosso e, depois, vamos fazer uma experiência que nunca foi feita aqui em nossa terra: vamos oferecer a homenagem do silêncio, vamos sair do cemitério sem uma palavra, silêncio profundo!... Nunca eu ouvi um silêncio tão impressionante. Era um silêncio que gritava.
Por Sérgio Montenegro Filho (smontenegrofilho@gmail.com)
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