Desde a o início do século 19 existia uma forte pressão internacional pela abolição da escravidão nas Américas. A Grã-Bretanha, principal potência capitalista da época, passou a exigir que países como o Brasil abolissem o tráfico intercontinental de escravos. Menos por razões humanitárias e mais por razões econômicas.
Em 1831, por pressão inglesa, foi assinado um acordo proibindo o comércio intercontinental de escravos com o Brasil. No entanto, maior que a pressão do "imperialismo" britânico foi a pressão dos grandes comerciantes e latifundiários escravistas brasileiros, que eram forças hegemônicas no Estado Nacional nascido em 1822. A lei jamais foi aplicada e, por isto mesmo, foi ironicamente intitulada de uma lei "para inglês ver".
Após a aprovação da lei cresceu o número de escravos negros introduzidos no Brasil. Isto enfureceu a principal avalista internacional de nossa independência. As coisas tenderam a se agravar após a abolição completa da escravidão nas colônias inglesas. Em 1845 o parlamento britânico aprovou uma lei, a Aberdeen, que dava à sua marinha poder para apreender navios negreiros e julgar os traficantes.
Cresceu, então, um nacionalismo de conteúdo escravista. As elites conservadoras, sempre subservientes aos interesses externos, passaram a radicalizar seu discurso contra a intervenção estrangeira nos negócios internos do país. Um patriotismo bastante suspeito. As mesmas classes não se envergonhavam da contratação de mercenários estrangeiros para reprimir os movimentos insurrecionais no nordeste e nem em relação aos volumosos empréstimos externos feitos pelo governo brasileiro para pagar a nossa independência.
Em resposta ao nacionalismo espúrio das elites escravistas se levantaria a voz de um dos maiores poetas brasileiros que, nas estrofes revolucionárias de seu poema épico O Navio Negreiro, cantou: "Existe um povo que a bandeira empresta/ Para cobrir tanta infâmia e cobardia! / E deixa-a transformar nessa festa/ Em manto impuro de bacante fria! / Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta, / Que impudente na gávea tripudia?! / Silêncio! (...) Musa! chora, chora tanto/ Que o pavilhão se lave no seu pranto!/ (...) Auriverde pendão de minha terra,/ Que a brisa do Brasil beija e balança,/ Estandarte que a luz do sol encerra,/ E as promessas divinas da esperança/ Tu, que da liberdade após a guerra/ Foste hasteado dos heróis na lança,/ Antes te houvesse roto na batalha,/ Que servires a um povo de mortalha!"
O movimento abolicionista adquiriu maior amplitude e ganhou amplas parcelas da população. A luta dos abolicionistas recebeu apoio internacional. Várias mensagens e manifestos de intelectuais progressistas europeus e americanos foram endereçados ao governo e ao parlamento brasileiro.
Acuado, o parlamento imperial aprovou, em 1871, a Lei do Ventre Livre que deu liberdade a todos os filhos de escravos nascidos a partir daquela data. O escravismo entrava na defensiva e procurava manobrar, adotando medidas protelatórias. Sabiam que a abolição era inevitável e que seria necessário adiá-la o quanto fosse possível. O próprio projeto dava aos proprietários escravistas o direito de manter o "liberto" sob sua guarda até os 21 anos de idade - ou seja, até 1891. A lei serviu para desorganizar momentaneamente o movimento abolicionista, afastando dele os elementos mais conciliadores. Apenas a ala radical do abolicionismo se manteve ativa.
No início da década de 1880 a campanha ganhou novamente as ruas. Ela adquiriu maior dimensão e mudou de qualidade. O escravismo, ainda mais acuado, buscou deter a avalanche abolicionista com novas medidas protelatórias. Em 1885 o parlamento imperial aprovou a Lei do Sexagenário. Esta, libertava os escravos com mais de 60 anos, mas os obrigava a trabalhar compulsoriamente por mais três longos anos, ou seja - até o fatídico ano de 1888. Obrigava também o liberto a ficar no município em que foi libertado por cinco anos, sob ameaça de prisão.
Os fazendeiros escravistas resistiram quanto puderam, se organizaram nos Clubes de Lavoura e passaram a formar milícias armadas para combater os abolicionistas. Jornais foram empastelados e militantes foram agredidos e mortos.
A Lei do Sexagenário, considerada infame, não conteve o ímpeto dos abolicionistas. Ninguém aceitava mais as medidas protelatórias do império. A estratégia reformista parecia derrotada em 1886. Diante da ineficácia dos métodos moderados - exclusivamente jurídicos e parlamentares -, uma parte de seus membros aderiu às posições mais radicais e passou a organizar fugas de escravos.
Em outubro de 1887 o escravismo sofreu um duro golpe quando o Marechal Deodoro da Fonseca, presidente do Clube Militar, solicitou que não se utilizasse o Exército na caçada de escravos fugitivos. Aumentou, assim, a cisão no aparato repressivo do Estado escravista e os senhores de escravos não podiam mais contar com o braço armado do Estado imperial.
Expressiva foi a declaração de voto do deputado escravista Lourenço de Albuquerque: "Voto pela abolição porque perdi a esperança de qualquer solução contrária; seriam baldados os esforços que empregasse; sendo assim, homenagem ao inevitável, à fatalidade dos acontecimentos."
No primeiro semestre de 1887 ocorreu o auge do movimento de fugas de escravos - que atingiu o seu ápice no mês de junho -, colocando a lavoura paulista em crise. As autoridades provinciais pediram reforço militar ao governo imperial. O Barão de Cotegipe enviou um navio de guerra e um batalhão de infantaria. Não foi à toa que em dois de junho de 1887 Campos Salles iniciou o processo de emancipação "voluntária" dos escravos - com cláusulas de serviço por vários anos - entre os fazendeiros paulistas.
A abolição da escravidão foi um grande passo na construção da nacionalidade. Não deve ser subestimada. Ela permitiu que o país desse mais um passo no sentido do desenvolvimento capitalista - condição da revolução socialista. Corretamente, afirmou o documento 500 anos de Luta: "A abolição resultou de um vasto movimento de massas, que incluiu os escravos rebelados, os setores médios das cidades, a intelectualidade avançada e os primeiros da classe operária (...)".
No entanto, como ela não foi acompanhada de uma reforma agrária e de leis protetoras do trabalhador emancipado, acabou mantendo a população negra liberta numa situação de miséria e longe de poder integrar-se à sociedade brasileira enquanto cidadãos. Alguns abolicionistas, reformistas e radicais, compreenderam estes limites. Por isto apresentaram a proposta de uma reforma agrária, como complemento necessário da reforma servil. Assim pensavam Nabuco, Patrocínio e Rebouças. Mas, a reforma agrária seria uma das tarefas que não poderiam ser realizadas por aquele Estado oligárquico e pelas classes dominantes brasileiras - quer na sua versão monárquica ou republicana.
Augusto Buonicore
domingo, 13 de maio de 2012
quinta-feira, 10 de maio de 2012
CAPITALISMO CORRUPTO
A corrupção tem acompanhado a história da humanidade, mas hoje chegou a tais extremos que seu significado etimológico torna-se incompleto: desestruturar, depravar, danar, viciar, perverter, propinar, subornar, não parecem suficientes para descrever este tipo de câncer inserido na sociedade, já que foi transformado num anti-valor.
A corrupção é um dos principais fenômenos que acontecem no mundo do desenvolvimento seja político, social e/ou econômico. É um mal universal que corrói as sociedades e as culturas estando também ligado a outras formas de injustiça e
imoralidade, como os crimes e assassinatos, violência de todos os tamanhos,
morte e todo tipo de impunidade, provocando exclusão, marginalização e medos
generalizados – além de gerar poder para poucos se locupletem. Afeta a dministração geral dos países, o processo eleitoral, o pagamento de impostos, as relações econômicas e comerciais e internacionais, além de corromper todos os tipos de mídias.
Está por igual na esfera pública ou privada na qual se completam mutuamente. Está
ligada ao tráfico de drogas, comércio de armas, suborno, a venda de favores e
decisões, tráfico de influência, enriquecimento ilícito. "Tudo isso, com
características quase apocalípticas, afirmou a Conferência Episcopal da reunião
do Equador em Quito, em 1988, em seu artigo "A corrupção e consciência cristã." Hoje, poder-se-ia considerar todos esses conceitos como absolutamente válido em qualquer lugar do mundo.
O capitalismo do fim do século vinte e início do vigésimo primeiro tornou-se, simplesmente, uma máfia. A corrupção mostra claramente que existe uma doença no sistema, corpo estranho, atacando-lhe: é sua essência, o que o constitui e define a forma que assume na atualidade.
"Os Estados Unidos exigem a liberdade de ação nas áreas globais e de acesso estratégico para regiões importantes do mundo para satisfazer as nossas necessidades de segurança nacional", afirmava um documento relacionado à Estratégia Nacional de Defesa de Washington, em 2008. O ganho será garantido a qualquer custo, e se for através da força bruta, não importa: o fim justifica os meios. A "livre concorrência" tão decantada em verso e prosa foi para as “calendas
gregas”. O mundo tornou-se base operacional de bandos de criminosos e ilegais
de todos os quilates! Com poder absoluto, com o controle do grande capital e ainda se dão ao luxo de falar de democracia e liberdade! Como um gangster pé-de-chinelo, o capitalismo atual se move com a bravata e a mais descarada impunidade.
Se no início do século XX o presidente dos EUA, Calvin Coolidge poderia dizer
que os empresários de seu país “faziam negócios” hoje deveríamos adicionar um qualificativo a palavra negócios, ou seja, denominá-lo de “negócio sujo".
O capitalismo atual é fundamentalmente baseado no sistema financeiro internacional, todos relacionados a mega-fundos - que não têm pátria, respondem apenas à lógica do dinheiro fácil e rapidamente migram para uma extraterritorialidade alienígena quando o ganho não lhes for favorável ou saindo sempre quando a supervisão bancária aperta ou quando o país sede utiliza normas e diretrizes relacionadas á sua soberania nacional. Este espaço não é controlado (como o negócio de armas ou drogas ilícitas) e que, inversamente, em grande medida se abrigam nos chamados paraísos fiscais e bancários offshore (bancos que cobram juros amigáveis dos aplicadores)
Hoje ninguém sabe exatamente quantas são as empresas e os capitais. A verdade
está lá fora, e sua presença na dinâmica global é crucial: as sociedades virtuais e reais que não são obrigados a apresentar balanços, para estabelecer a sua estrutura de propriedade, ou mesmo ter algum capital. Eles (os capitais) se abrigam em todo o mundo: ilhas perdidas espalhadas por todo o mundo, capitais de países do Norte, ou curiosidades como o Principado de Sealand, que funciona em uma plataforma de óleo velho no mar do Norte, ou o Domínio de Melchizedek, a "nação virtual" em primeiro
lugar, localizado em um vizinho atol deserto às Ilhas Marshall, na Micronésia,
no meio do Oceano Pacífico, através do seu site oferece nacionalidade, passaporte e facilidades para todos os tipos de empresas.
Hoje como ontem, nós enfrentamos os mesmos problemas: o sistema beneficia poucos à custa de danos à maioria. A diferença é que agora toda a criminosa corrupção foi se disfarçando em algo legal (com a conivência ou omissão de muitos).
Em outras palavras, estamos nas mãos de uns poucos bandidos perigosos, cheio de poder e disposto a fazer qualquer coisa para continuar a manter seus privilégios. Mas
estamos confiantes que a história não acabou, e como disse uma vez o espanhol
Xabier Gorostiaga: "os que seguem tendo esperança nunca serão estúpidos."
Marcelo Colussi*, Argenpress
*Escritor y politólogo argentino.
domingo, 6 de maio de 2012
A FOGUEIRA DO ÓDIO
O maior problema é que, muitas vezes, a radicalização caminha junto com o desespero.
Como aquele homem que diante da difícil tarefa de capinar o terreno, coloca fogo no campo.
Foi assim, com o desespero de mãos dadas com o extremismo que o nazismo floresceu num dos estados mais evoluídos e civilizados, como a Alemanha, e as labaredas de sua insânia atingiram toda a Europa.
A história não é, como muitos pensam, um mero relato do que já aconteceu. Muito mais que isso, a história, individual ou da civilização é uma advertência para que os erros não se repitam.
Por isso, temos que entender que um cidadão nórdico, típico, instruído e bem relacionado, que sai matando as pessoas que encontra no caminho e que, justifica seu desatino como um protesto diante da passividade de seu governo à questão da imigração, não é apenas um doidinho de atar, como muitos pensam.
Adolf Hitler também foi diminuído em importância e rotulado como “um sujeito engraçado” ou “um doidinho de atar” antes de 1933, quando chegou ao poder.
Ainda por isso, temos que entender de quase 20% de votos para a Sra. Le Pen, digna representante da extrema-direita francesa, não são meros 20%, mas um aviso que o monstro está vivo e doido para reassumir importância, não como um estigma do passado, mas como um personagem do presente.
Quando a crise bate à porta, muitas mentes imprevidentes procuram por culpados.
Um culpado que nunca é ele mesmo ou seu meio, mas um estranho, um componente de fora, um terceiro.
Assim sendo, todos os povos e seus governos devem estar atentos para todo avanço da xenofobia.
Nada, nesse sentido, pode ser negociado.
Não podemos aceitar os elogios ao primeiro-ministro australiano por ter “coragem” de dizer as verdades aos imigrantes muçulmanos da Austrália da mesma forma que não podemos achar algo distante e sem importância a imitação de macaco, ouvida nos estádios de futebol da Europa, quando um jogador negro toca na bola.
Temos que ser intolerantes com a intolerância.
Não podemos proteger com a democracia quem defende o fim da democracia.
Não podemos dormir tranquilamente enquanto pensões muçulmanas são queimadas ou cemitérios judeus são violados, já que não somos nem muçulmanos, nem judeus.
Se hoje as chamas da intransigência não queimam teus pés, a história ensina que amanhã a fogueira do ódio racial poderá te engolir inteiro.
Prof. Péricles
quarta-feira, 2 de maio de 2012
JORNALISMO BANDIDO
A influência da imprensa no alto escalão da política britânica tornou-se a pauta preferida dos chás ingleses desta semana. O magnata Rupert Murdoch depôs e foi a grande estrela da comissão de inquérito presidida pelo juiz Brian Leveson.
Instaurada após a eclosão do escândalo de espionagem de centenas de caixas postais telefônicas feita pelo News of the World (fechado em 2011, após o escândalo), ela investiga os padrões éticos da mídia na Inglaterra e a relação entre jornalistas e políticos.
O premier David Cameron, do Partido Conservador, já esquentara a pauta ao afirmar em sessão no Parlamento: "Todos nós tivemos contato com Rupert Murdoch". Murdoch, porém, no depoimento minimizou sua influência sobre os jornais britânicos. Calmo, bem humorado, sustentou nunca ter pedido nada a um primeiro-ministro: "É natural que políticos busquem editores e às vezes proprietários, se eles estiverem disponíveis, para explicar o que estão fazendo. Mas, eu era apenas um entre muitos."
Nesta 3ª, porém, novas revelações foram feitas por seu filho, James Murdoch. Este confirmou ter estreitos contatos com os ministros do Reino Unido. Em especial, o de Cultura, Jeremy Hunt, ministro sob suspeita de ter passado informações ao grupo Murdoch para a compra da totalidade da operadora de TV a cabo “BSkyB”, da qual a News Corp. já possuía 39% das ações. A oferta para obter o total de ações da operadora foi atropelada pelo escândalo das escutas telefônicas.
Barões da mídia não admitem discutir jornalismo bandido
Murdoch filho nega que Hunt fosse um “grande aliado” na operação, mas confirmou ter tido “inúmeras conversas sobre diferentes assuntos relativos aos negócios e a indústria dos meios de comunicação em geral”. O filho do magnata disse, também, ter estado nada menos que em 12 oportunidades com o premiê Cameron.
Um desses encontros foi em 2010, quando o premier ainda estava na oposição. E mais, Murdoch filho contou que pelo menos em quatro desta uma dúzia de vezes em que esteve com Cameron, Rebekah Brooks, ex-diretora da News International e antiga diretora do “The Sun” e do “The News of the World”, também estava presente. Ela também é investigada por seu papel no escândalo.
Pois é, enquanto a mídia britânica topa discutir seus podres e o principal magnata dela chega quase ao banco dos réus, nós aqui no Brasil, nada de regulamentarmos a nossa imprensa, hein? É discutir o assunto aqui, levantar uma palavra a respeito, e os barões da mídia já vêm com tudo em sua velha história de que é censura, ameaça à liberdade de imprensa...E assim, continuam senhores absolutos de seus monopólios de comunicação e informação usando-os de acordo com seus interesses políticos e econômicos.
Fazem cara de paisagem, fingem que não é com eles e nem em suas empresas, e não discutem o assunto nem agora, que o episódio Carlos Cachoeira desnudou a prática de jornalismo bandido no Brasil, as relações promíscuas da mídia com o crime organizado na produção de notícias contra seus adversários.
Por José Dirceu, em seu blog
domingo, 29 de abril de 2012
A CRUCIFICAÇÃO EM ATENAS
O homem que prenderam, interrogaram, torturaram, humilharam, escarneceram e crucificaram, na Palestina de há quase dois mil anos, foi, conforme os Evangelhos, um ativista revolucionário. Ele contestava a ordem dominante, ao anunciar a sua substituição pelo reino de Deus. O reino de Deus, em sua pregação, era o reino do amor, da solidariedade, da igualdade. Mas não hesitou em chicotear os mercadores do templo, que antecipavam, com seus lucros à sombra de Deus, o que iriam fazer, bem mais tarde, papas como Rodrigo Bórgia, Giullio della Rovere, Giovanni Médici, e cardeais como os dirigentes do Banco Ambrosiano, em tempos bem recentes.
... Ao longo da História, duas têm sido as imagens daquele rapaz de Nazaré. Uma é a do filho único de Deus, havido na concepção de uma jovem virgem, escolhida pelo Criador. Outra, a do homem comum, nascido como todos os outros seres humanos, em circunstâncias de tempo e lugar que o fizeram um pregador, continuador da missão de seu primo, João Batista, decapitado porque ameaçava o poder de Herodes Antipas. Tanto João, quanto Jesus, foram, como seriam, em qualquer tempo e lugar, inimigos da ordem que privilegiava os poderosos. Por isso – e não por outra razão – foram assassinados, decapitado um, crucificado o outro.
(...) O Reino de Deus, sendo o reino da justiça, é a libertação. Daí a associação entre essa felicidade e a vida eterna, presente em quase todas as religiões. Na pregação de Cristo, a libertação começa na Terra, na confraternização entre todos os homens. Daí o conselho aos que o quisessem seguir, e ainda válido – repartissem com os pobres os seus bens, como fizeram, em seguida, os seus apóstolos, ao criar a Igreja do Caminho. Se acreditamos na vida eterna, temos que admitir que a vida na Terra é uma parcela da Eternidade, que deve ser habitada com a consciência do Todo. Assim, a vida eterna começa na precariedade da carne.
Quarta-feira passada um grego, Dimitris Christoulas, chegou pela manhã à Praça Syntagma, diante do Parlamento Grego, buscou a sombra de um cipreste secular, levou o revólver à têmpora, e disparou. Em seu bilhete de suicida estava a razão: aos 77 anos, farmacêutico aposentado, teve a sua pensão reduzida em mais de 30%, ao mesmo tempo em que se elevou brutalmente o custo de vida. As medidas econômicas, ditadas pelo empregado do Goldman Sachs e servidor do Banco Central Europeu, nomeado pelos banqueiros primeiro ministro da Grécia, Lucas Papademos, não só reduziram o seu cheque de aposentado, como o privaram dos subsídios aos medicamentos. “ Quero morrer mantendo a minha dignidade, antes que me veja obrigado a buscar comida nos restos das latas de lixo” – escreveu em seu bilhete de despedida, lido e relido pelos que tentaram socorrê-lo, e que se reuniam na praça.
(...) No mesmo texto, Christoulas incita claramente os jovens gregos sem futuro à luta armada, a pendurar os traidores, na mesma praça Syntagma, “como os italianos fizeram com Mussolini em Milão, em 1945”. O tronco do cipreste se tornou painel dos protestos escritos. Em um deles, o suicídio de Christoulas é definido como um “crime financeiro”.
Nunca, em toda a História, tivemos tanto desdém pela vida dos homens, como nestes tempos de ditadura financeira universal.(...)
Ao expirar, depois de torturado, ultrajado seu corpo, humilhado, escarnecido, Cristo se tornou a maior referência de justiça. Aos 77 anos, o aposentado grego, ao matar-se, transformou-se em bandeira que ameaça iniciar, na Grécia, novo movimento em favor da igualdade – a mesma idéia que levou Péricles a fundar o primeiro estado de bem-estar social, ao reconstruir Atenas, empregar todos os pobres, e dotar os marinheiros do Pireu do pioneiro conjunto de casas populares da História.
Vinte séculos podem ter sido apenas rápido intervalo – um pequeno descanso da razão.
Santayana: a crucificação de Cristo e o suicídio em Atenas
por Mauro Santayana
... Ao longo da História, duas têm sido as imagens daquele rapaz de Nazaré. Uma é a do filho único de Deus, havido na concepção de uma jovem virgem, escolhida pelo Criador. Outra, a do homem comum, nascido como todos os outros seres humanos, em circunstâncias de tempo e lugar que o fizeram um pregador, continuador da missão de seu primo, João Batista, decapitado porque ameaçava o poder de Herodes Antipas. Tanto João, quanto Jesus, foram, como seriam, em qualquer tempo e lugar, inimigos da ordem que privilegiava os poderosos. Por isso – e não por outra razão – foram assassinados, decapitado um, crucificado o outro.
(...) O Reino de Deus, sendo o reino da justiça, é a libertação. Daí a associação entre essa felicidade e a vida eterna, presente em quase todas as religiões. Na pregação de Cristo, a libertação começa na Terra, na confraternização entre todos os homens. Daí o conselho aos que o quisessem seguir, e ainda válido – repartissem com os pobres os seus bens, como fizeram, em seguida, os seus apóstolos, ao criar a Igreja do Caminho. Se acreditamos na vida eterna, temos que admitir que a vida na Terra é uma parcela da Eternidade, que deve ser habitada com a consciência do Todo. Assim, a vida eterna começa na precariedade da carne.
Quarta-feira passada um grego, Dimitris Christoulas, chegou pela manhã à Praça Syntagma, diante do Parlamento Grego, buscou a sombra de um cipreste secular, levou o revólver à têmpora, e disparou. Em seu bilhete de suicida estava a razão: aos 77 anos, farmacêutico aposentado, teve a sua pensão reduzida em mais de 30%, ao mesmo tempo em que se elevou brutalmente o custo de vida. As medidas econômicas, ditadas pelo empregado do Goldman Sachs e servidor do Banco Central Europeu, nomeado pelos banqueiros primeiro ministro da Grécia, Lucas Papademos, não só reduziram o seu cheque de aposentado, como o privaram dos subsídios aos medicamentos. “ Quero morrer mantendo a minha dignidade, antes que me veja obrigado a buscar comida nos restos das latas de lixo” – escreveu em seu bilhete de despedida, lido e relido pelos que tentaram socorrê-lo, e que se reuniam na praça.
(...) No mesmo texto, Christoulas incita claramente os jovens gregos sem futuro à luta armada, a pendurar os traidores, na mesma praça Syntagma, “como os italianos fizeram com Mussolini em Milão, em 1945”. O tronco do cipreste se tornou painel dos protestos escritos. Em um deles, o suicídio de Christoulas é definido como um “crime financeiro”.
Nunca, em toda a História, tivemos tanto desdém pela vida dos homens, como nestes tempos de ditadura financeira universal.(...)
Ao expirar, depois de torturado, ultrajado seu corpo, humilhado, escarnecido, Cristo se tornou a maior referência de justiça. Aos 77 anos, o aposentado grego, ao matar-se, transformou-se em bandeira que ameaça iniciar, na Grécia, novo movimento em favor da igualdade – a mesma idéia que levou Péricles a fundar o primeiro estado de bem-estar social, ao reconstruir Atenas, empregar todos os pobres, e dotar os marinheiros do Pireu do pioneiro conjunto de casas populares da História.
Vinte séculos podem ter sido apenas rápido intervalo – um pequeno descanso da razão.
Santayana: a crucificação de Cristo e o suicídio em Atenas
por Mauro Santayana
quinta-feira, 26 de abril de 2012
COTAS E PRECONCEITOS
O Supremo Tribunal Federal julgará hoje a constitucionalidade das cotas para afrodescendentes e índios nas universidades públicas brasileiras.
No palpite de quem conhece a Corte, o resultado será de, pelo menos, sete votos a favor e quatro contra. Terminará assim um debate que durou mais de uma década e, como outros, do século 19, expôs a retórica de um pedaço do andar de cima que via na iniciativa o prelúdio do fim do mundo.
Em 1871, quando o Parlamento discutia a Lei do Ventre Livre, argumentou-se que libertando-se os filhos de escravos condenava-se as crianças ao desamparo e à mendicância. "Lei de Herodes", segundo o romancista José de Alencar.
Quatorze anos depois, tratava-se de libertar os sexagenários. Outro absurdo, pois significaria abandonar os idosos. Em 1888, veio a Abolição (a última de país americano independente), mas o medo a essa altura era menor, temendo-se apenas que os libertos caíssem na capoeira e na cachaça. Como dizia o Visconde de Sinimbu: "A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo".
A votação do projeto foi acelerada pelo clamor provocado pelo linchamento de um promotor que protegia negros fugidos no interior de São Paulo. Entre os assassinos, estava James Warne, vulgo "Boi", um fazendeiro americano que emigrara depois da derrota do Sul na Guerra da Secessão.
As cotas seriam coisa para inglês ver, "lumpenescas propostas de reserva de mercado". Estimulariam o ódio racial e baixariam a qualidade dos currículos das universidades. Como dissera o barão de Cotegipe, "brincam com fogo os tais negrófilos". Os cotistas seriam incapazes de acompanhar as aulas.
Passaram-se dez anos, pelo menos 40 universidades instituíram cotas para afrodescendentes e hoje há milhares de negros exercendo suas profissões graças à iniciativa.
O fim do mundo ficou para a próxima. Para quem acha que existe uma coisa como ditadura dos meios de comunicação, no século 21, como no 19, todos os grandes órgãos de imprensa posicionaram-se contra as cotas. Ressalve-se a liberdade assegurada aos articulistas que as defendiam.
Julgando a constitucionalidade das iniciativas das universidades públicas que instituíram as cotas, o Supremo tirará o último caroço da questão. No memorial que encaminharam na defesa do sistema, os advogados Márcio Thomaz Bastos, Luiz Armando Badin e Flávia Annenberg começaram pelos números: "Em 2008, os negros e pardos correspondiam a 50,6% da população e a 73,7% daqueles que são considerados pobres. (...) Em 1997, 9,6% dos brancos e 2,2% dos pretos e pardos de 25 ou mais idade tinham nível superior".
E concluíram: "A igualdade nunca foi dada em nossa história. Sempre foi uma conquista que exigiu imaginação, risco e, sobretudo, coragem. Hoje não é diferente".
O senador Demóstenes Torres, campeão do combate às cotas, chegou a lembrar que a escravidão era uma instituição africana, o que é verdade, mas não foram os africanos que impuseram a escravatura ao Brasil.
Nas suas palavras: "Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos, mas chegaram..."
Hoje o Supremo virará a última página da questão. Ninguém se lembra de James Barne, mas Demóstenes será lembrado por outras coisas.
Elio Gaspari
Historiador
No palpite de quem conhece a Corte, o resultado será de, pelo menos, sete votos a favor e quatro contra. Terminará assim um debate que durou mais de uma década e, como outros, do século 19, expôs a retórica de um pedaço do andar de cima que via na iniciativa o prelúdio do fim do mundo.
Em 1871, quando o Parlamento discutia a Lei do Ventre Livre, argumentou-se que libertando-se os filhos de escravos condenava-se as crianças ao desamparo e à mendicância. "Lei de Herodes", segundo o romancista José de Alencar.
Quatorze anos depois, tratava-se de libertar os sexagenários. Outro absurdo, pois significaria abandonar os idosos. Em 1888, veio a Abolição (a última de país americano independente), mas o medo a essa altura era menor, temendo-se apenas que os libertos caíssem na capoeira e na cachaça. Como dizia o Visconde de Sinimbu: "A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo".
A votação do projeto foi acelerada pelo clamor provocado pelo linchamento de um promotor que protegia negros fugidos no interior de São Paulo. Entre os assassinos, estava James Warne, vulgo "Boi", um fazendeiro americano que emigrara depois da derrota do Sul na Guerra da Secessão.
As cotas seriam coisa para inglês ver, "lumpenescas propostas de reserva de mercado". Estimulariam o ódio racial e baixariam a qualidade dos currículos das universidades. Como dissera o barão de Cotegipe, "brincam com fogo os tais negrófilos". Os cotistas seriam incapazes de acompanhar as aulas.
Passaram-se dez anos, pelo menos 40 universidades instituíram cotas para afrodescendentes e hoje há milhares de negros exercendo suas profissões graças à iniciativa.
O fim do mundo ficou para a próxima. Para quem acha que existe uma coisa como ditadura dos meios de comunicação, no século 21, como no 19, todos os grandes órgãos de imprensa posicionaram-se contra as cotas. Ressalve-se a liberdade assegurada aos articulistas que as defendiam.
Julgando a constitucionalidade das iniciativas das universidades públicas que instituíram as cotas, o Supremo tirará o último caroço da questão. No memorial que encaminharam na defesa do sistema, os advogados Márcio Thomaz Bastos, Luiz Armando Badin e Flávia Annenberg começaram pelos números: "Em 2008, os negros e pardos correspondiam a 50,6% da população e a 73,7% daqueles que são considerados pobres. (...) Em 1997, 9,6% dos brancos e 2,2% dos pretos e pardos de 25 ou mais idade tinham nível superior".
E concluíram: "A igualdade nunca foi dada em nossa história. Sempre foi uma conquista que exigiu imaginação, risco e, sobretudo, coragem. Hoje não é diferente".
O senador Demóstenes Torres, campeão do combate às cotas, chegou a lembrar que a escravidão era uma instituição africana, o que é verdade, mas não foram os africanos que impuseram a escravatura ao Brasil.
Nas suas palavras: "Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos, mas chegaram..."
Hoje o Supremo virará a última página da questão. Ninguém se lembra de James Barne, mas Demóstenes será lembrado por outras coisas.
Elio Gaspari
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