domingo, 23 de março de 2014

50 ANOS DEPOIS



Nós que nem éramos vivos em 1964 e que jamais nos sentimos perseguidos, não tivemos nenhuma culpa se outros 500 mil brasileiros foram ilegalmente investigados pelos órgãos de segurança, nem pelos 200 mil brasileiros detidos para averiguações sendo que desses quase dois mil rotulados como “suspeitos políticos” nunca mais conseguiram bons empregos ou aprovação em crediário, tão necessários para qualquer compra a prazo.

Nem nós que ainda éramos muito crianças na década de 60 podemos ser responsabilizados pelas 10 mil pessoas torturadas da forma mais indigna e perversa em toda nossa história. Torturas psíquicas e torturas físicas que mataram, estupraram e deixaram seqüelas para o resto da vida dos sobreviventes.

Como responsabilizar quem nunca passou fome em terra estranha e que nunca esteve desempregado num país estrangeiro de não entender a dor de cerca de 10 mil brasileiros exilados, sem direito de defesa, alguns, por mera denúncia anônima de alguém no período de vigência do AI-5?

Que parâmetros de valor temos para entender o desespero de 1.148 funcionários públicos e seus familiares depois de demitidos apenas por serem considerados simpatizantes do presidente deposto, ou dos 1.312 militares contrários à Ditadura reformados sem requerer a reforma, ou ainda pelos 245 estudantes expulsos das universidades e proibidos de freqüentar qualquer ensino superior no país?

E quem viveu esses momentos, mas que pela desinformação, foi mantido alienado não tem responsabilidade nenhuma por sua ignorância premeditada pela censura.

Não temos culpa da dor que mutila o corpo e dilacera a alma, do tapa na cara que envergonha, da violência sexual praticada com requintes de barbárie.

Nossos corações estavam longe sendo amadurecidos, e o som que predominava era o Iê-Iê-Iê ou bossa nova e não os gemidos dos calabouços.

Meia geração sonhava com um calhambeque a mais de 100 km na estrada de Santos, curtia a vida adoidada dos anos 60 enquanto a outra metade era massacrada nas matas do Araguaia, nas Casas de Petrópolis ou em algum porão encardido do Brasil.

Mesmo aqueles que sabiam algumas coisas, mas preferiram viver suas vidas fazendo de conta que nada sabiam têm culpa direta pelos 400 mortos, a maioria sem nenhuma chance de defesa, sendo que destes, 144 ainda estão desaparecidos e para suas famílias o pesadelo ainda não acabou.

Não, nós não estávamos lá, não pactuamos ou não sabíamos de nada disso Nós realmente não temos culpa desse terror, desse fascismo abrasador que enoiteceu o Brasil por mais de 20 anos.

Mas a história é dinâmica, ela gira sua roda e nos cobra uma postura.

O próximo 31 de março marcará 50 anos do dia em que tudo começou.

Estranhamente, 50 anos depois, podemos nos tornar cúmplices de tudo isso.

Desnudos do manto da ignorância basta uma palavra de elogio ao terror, de simpatia à força bruta ou o silêncio diante da injustiça para nossa cumplicidade se tornar evidente...


Mesmo que distante no tempo, qualquer aprovação, objetiva ou dissimulada, ao período de exceção representará nossa aceitação a todos os crimes.

Não podemos ser criminosos cinqüenta anos depois.

Que a nossa voz seja de defesa da democracia e de desprezo aos que, por outros interesses buscam criar verdades em cima de mentiras, expressando valores hipócritas em marchas espúrias.

Não nos deixemos levar pela ingenuidade de quem não estava lá, não defende os mais frágeis, não defende a inclusão, e mesmo assim, acha que está com Deus.

O inferno é logo ali. E o inferno quando aberto, engole a todos. Hoje a desconhecidos e anônimos, mas amanhã, nossos amigos e nossos amores.

O silêncio dos bons deve inquietar mais do que a fanfarra das viúvas da ditadura.

Se ontem, a ignorância nos absolve, hoje somos chamados a construir um mundo mais justo.

Não podemos ser cúmplices, cinqüenta anos depois.



Prof. Péricles





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