segunda-feira, 7 de janeiro de 2013
OS VÔOS DA MORTE
Floreal Avellaneda achava que não suportaria mais tanta dor.
Desde que fora preso na cidade de Vicente López e depois de trazido arrastado para a ESMA (Escola de Mecânica da Armada argentina) já passara por verdadeiro suplício.
Pancadas foram tantas que já se tornara dormente e nem mais ligava para elas.
O que doía mesmo eram os choques elétricos, principalmente nos testículos, ou na língua, que lhe faziam saltar além de sua vontade, como se toda a musculatura de seu corpo tivesse vontade própria.
Incomodava também, o hábito dos torturadores de apagar os cigarros em sua pele. Queimaduras de cigarro ardem muito especialmente quando vários cigarros são apagados no mesmo lugar.
Caíra em abril de 1976, mas não sabia mais em que mês estava pois sua cabeça não conseguia organizar os pensamentos, embora o esforço para não perder a lucidez. Percebera a transferência para o Campo de Mayo, mas isso, não alterou em nada sua agonia.
Na última sessão de tortura, dois dias atrás, eles, os seus carrascos, exageraram. Um choque fora tão forte que lhe cortara um pedaço enorme da língua. Sentiu vontade vomitar mas as pancadas em sua cabeça foram tão repetidas que ele sufocara com o próprio vômito, não morrendo por um detalhe.
Agora, encolhido no canto da cela permanecia com os olhos fechados não só pela dor e pelo cansaço de dias sem dormir, mas porque, se abrisse os olhos veria Maria Rosa Mora, companheira de militância, presa junto com ele, estirada na cela ao lado. Ele fora obrigado a assistir as torturas em Maria Rosa, os estupros seguidos e seus gritos que foram diminuindo de intensidade até tornarem-se apenas sussurros.
Quando ouviu os passos que se aproximam da cela ele imaginou que iria para a última sessão. Dificilmente sobreviveria mais uma vez.
Floreal Avellaneda tinha apenas 17 anos, mais o sofrimento o envelhecera rapidamente, e, como um veterano da dor, respirou fundo, esperando o suplício final. Havia decidido morrer sem dizer nada, sem entregar nenhum companheiro à mesma sanha assassina e dessa decisão não se afastaria.
Para a sua surpresa, a primeira figura que reconheceu na frente de sua cela, foi um padre. Por segundos se sentiu aliviado. Padres representam Deus e certamente são contra as torturas. Com um padre por perto talvez sobrevivesse.
O torturador-mor entrou em seguida.
Maria Rosa Mora abrira também os olhos, embora não fizesse o menor ruído.
Sem rodeios o “general”, como gostava de ser chamado, disse com sua voz aguda que os dois, Floreal e Maria Rosa, eram pessoas de muita sorte. Recebera ordens para solta-los, com a condição de que abandonassem o país imediatamente e para sempre. Por mim, dizia o General, eu matava os dois, mas ordens são ordens.
Enquanto dois homens se aproximavam dos prisioneiros e aplicavam uma injeção em cada um, o padre dizia que estava ali para garantir suas seguranças, que as injeções eram para aliviar as dores e que os acompanhariam até o outro lado da fronteira, no Chile, de onde poderiam ir para onde quisessem.
Floreal percebeu que chorava quando não mais enxergava o padre próximo falando. Sua lágrima de felicidade turvava a visão. Mas, a injeção, maravilhosa, lhe tirava bastante as dores, deixando uma sensação agradável e alguma tontura.
Com algum esforço ergueu os braços alcançando as mãos do padre e beijo-as com enorme alívio.
A partir daí sua rota foi entremeada de vigília com sono, como se estivesse sonhando um sonho prolongado e vagaroso.
Viu-se numa maca sendo colocado num avião, ao lado de Maria Rosa. Depois, despertou com a voz do padre que rezava uma daquelas preces conhecidas que sua mãe ensinara. Depois viu que alguns homens tentavam erguê-lo. Viu o mar, estranhamente belo e infinitamente azul, que como um manto celeste lhe prometia abrigo. Sorriu, compreendendo estar próximo da liberdade...
Em meados de Maio de 1976, os corpos de Floreal Avellaneda e de Maria Rosa Mora foram encontrados, com as mãos amarradas, no Balneário de Rochas, no Uruguai.
O método de arremessar pessoas a partir de aviões e helicópteros, conhecidos como Vôos da Morte, foi aplicado pelos três ramos das forças armadas argentinas e por várias forças de segurança, durante a ditadura militar daquele país.
Sabe-se que os prisioneiros políticos condenados eram enganados com a promessa de que teriam a liberdade. Eram dopados antes do embarque para evitar qualquer tipo de reação e levados para alto mar.
O coronel Albino Zimmermann, chefe de polícia de Antonio Bussi, chegou a gabar-se em reuniões familiares de ter atirado vários guerrilheiros para a morte e fazia piada imaginando a surpresa dos infelizes.
Calcula-se em mais de 5 mil vítimas nos vôos da morte, alguns com a anuência e colaboração de padres que chegavam a dar a extrema-unção dentro das aeronaves.
A principal pista sobre os executores diretos foi dada em 1995 pelo ex gendarme Federico Talavera, que admitiu que a cada vinte dias transportava seqüestrados adormecidos num caminhão Mercedes-Benz rumo à base de El Palomar, onde eram carregados num Hércules da Força Aérea.
Em dezembro iniciou-se na Argentina, o julgamento de pilotos dos “vôos da morte”, que promete envolver lágrimas, revolta e muita emoção em todo o país.
Ao contrário do Brasil, a Argentina busca cicatrizar suas feridas punindo os culpados desse passado tenebroso para que fatos assim não voltem a ocorrer no país.
A todos que entendem o respeito aos direitos humanos como pressuposto da democracia, cabe acompanhar esse caso por mais doloroso que seja.
É o mínimo que se pode fazer em memória de suas vítimas.
Prof. Péricles
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