quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

OS IMORTAIS DO FACEBOOK



Por Sheila Sacks,

Qualquer que seja a forma de imortalidade que o futuro nos reserve – holograma ou avatar, cura ou clonagem, já existe uma da qual dispomos hoje mesmo: a permanência nas redes sociais, uma forma de vida virtual póstuma que a bem da verdade deixa o defunto tão gelado quanto já estava, mas de certa forma deposita uma cópia dele na nuvem, para consolo dos seus seres queridos, ou pelo menos dos amigos de Facebook.

Por mentira que pareça, o Facebook não tem nem dez anos, mas 30 milhões de usuários seus já morreram, seguindo esse fatídico costume de todas as coisas biológicas neste vale de lágrimas.

Esse é, portanto, o número de almas que andam penando pelo lado escuro da rede social de Mark Zuckerberg.

Não é raro, por exemplo, que lhe chegue um pedido de amizade de um morto, o que pode levá-lo a certa, digamos, inquietação filosófica.

O Facebook, aliás, oferece a possibilidade de criar uma conta em homenagem a usuários que já nos deixaram, e há sites como o espanhol Duelia.org que se dedicam exclusivamente a esse tipo de coisa.

Outras empresas, como o Grupo Mémora permitem compilar o legado digital do finado, o que pode acabar sendo pavoroso, ao menos em certos casos. Felizmente, há outras firmas, como a Postumer.com, que se empenham em fazer justamente o contrário: eliminar as contas do morto e apagar sua passagem por este mundo, para começar do zero em outro.

Apesar de tudo isso, os enterros, cremações e funerais continuam sendo tão reais como antes da invenção do transístor, embora nem por isso permaneçam imunes aos avanços tecnológicos.

Um terço dos participantes de enterros, por exemplo, tira selfies no cemitério, e muitos deles postam a foto no Instagram sem nem esperar o caixão baixar, segundo um estudo com 2.700 pessoas encomendado pela funerária britânica Perfect Choice Funerals.

Não se sabe ao certo por que a empresa quis fazer a pesquisa; talvez cogite alugar paus de selfie na hora em que o cortejo fúnebre aparece. Nessas horas difíceis, afinal, sempre há quem esqueça o seu em casa.

Que diferença faz um selfie ao lado disso tudo?

Ou, ampliando o foco da pergunta: o que há de realmente novo no luto do mundo contemporâneo? Será que a ciência e a tecnologia nos oferecem alguma forma nova, ainda que metafórica, de imortalidade? E, se não, oferecerão algum dia?

Com relação à primeira pergunta, sobre a situação atual, o Facebook, os blogs e demais sites dedicadas ao luto e à memória estão estendendo à população geral o que até agora era privilégio de grandes escritores, memorialistas e outras celebridades: a imortalidade conferida pela obra.

O problema é que, a despeito do que digam padres, metafísicos e livros de autoajuda, a morte não é um assunto religioso, metafísico ou psicanalítico, e sim algo tão concreto quanto a própria vida, que é feita de coisas que se deterioram, se degeneram e se desintegram.

Existem poucos princípios tão gerais como esse. Todos entendemos perfeitamente a morte, desde que seja a morte dos outros. Nossa incapacidade de aceitar a nossa, e de viver tranquilamente até que ela chegue, não é senão uma consequência de como é difícil entender a ideia de não ser.

A clonagem nos tornará imortais? Não, pelo amor de Deus. Um clone não é senão um irmão gêmeo, só que vive mais tarde. E, vendo um casal de gêmeos, ninguém acha que se um deles morrer irá sobreviver no outro. São duas pessoas, extremamente parecidas, mas duas.

Então, não será possível descarregar a estrutura cerebral de alguém, incluídas todas as suas experiências e lembranças, em algum tipo de suporte físico ou informático? Pois com certeza sim, porém o resultado não será você, e sim outra coisa que se parecerá em tudo com você, mas será outra coisa. Melhor esquecermos a ideia de sermos imortais.

Se cada um de nós deixar uma página no Facebook, não haverá ninguém para lê-las, e continuaremos sozinhos e ignorados durante uma eternidade de silício, um infinito interminável, uma nada como qualquer outro, um tédio.




Sheila Sacks, jornalista formada pela PUC-RJ sempre trabalhou em assessoria de imprensa.Tem artigos publicados nos sites Observatório da Imprensa e Rio Total.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A ILUSÃO DE FAZER PARTE


Quando os Estados Nacionais começaram a surgir, a partir do século XII, a idéia era: a existência de um território demarcado, um povo com alguma identidade cultural nesse território e um governo centralizado, que governasse para todos.

Essa era a proposta contra o decadente mundo feudal, das guerras intermináveis, das pestes sem controle e da fome.

Mas, para que isso funcionasse foi preciso criar uma ilusão.

A ilusão era que todos fariam parte do mesmo jeito, do Estado Nacional.

Ou melhor, todos seriam iguais aos olhos do Rei.

E funcionou.

O Estado Nacional era um estado aristocrático (dos nobres) montado em cima do absolutismo real (o rei era um nobre) e na parceria desse rei com a nobreza.

Povo e burguesia (não confundam os dois) ficaram num patamar abaixo.

A burguesia não se iludiu, porém, aceitou o jogo que naquele momento histórico lhe favorecia, pois era preferível o despotismo do o rei único do que o poder esfarelado e compartilhado por vários nobres.

Já o povo, esse sim, foi iludido.

Homens das letras como Jean Bodin e Jacques Boissue foram fundamentais para a criação dessa ilusão divulgando idéias de “direito divino” do rei.

Como questionar a autoridade do Rei sem questionar a vontade de Deus?

Dessa forma, o pobre era submetido às piores privações e obrigações (como pagar impostos enquanto os ricos não pagavam) porque acreditavam fazer parte dos interesses do rei.

Eram infelizes tanto quanto seus avós no feudalismo, mas faziam parte.

Pobres até ganharam um nome bonitinho... súditos. Todos, independente da classe social, eram súditos do Rei.

Mas, as relações burguesia e rei se deterioraram com o tempo e chegou o momento, nos séculos XVII e XVIII, que a burguesia resolveu assumir o poder, nascendo, o estado burguês.

As Revoluções Inglesas e a Revolução Francesa fazem parte desse momento.

Movimentos encantadores de luta pela liberdade e igualdade, na verdade, ápice da ilusão de fazer parte.

Forjou-se a idéia de que o povo (e não a burguesia) assumia o poder cortando a cabeça do rei tirano.

Iluministas como Rosseau e Voltaire deram vida a conceitos como “igualdade” no caldeirão que deu origem ao sistema mais discriminador de todos os tempos, o capitalismo.

Todos os homens são iguais perante a Lei, ilusão.

Os governos devem governar visando o bem comum.

Ilusão.

Igualdade, liberdade, fraternidade.

Ilusões.

A democracia burguesa é um castelo de cartas marcadas.

Nenhum sistema excluiu mais do que o capitalismo.

A liberdade foi apenas do investimento já que o Rei absolutista perdeu o poder de decidir sobre economia.

Já a igualdade foi só da concorrência liberal.

O mundo é dos espertos dizia minha filósofa vó.

Quem pode mais chora menos, diz a cultura popular.

A corrupção dos outros não é a minha, diz a consciência amestrada que reflete o fazer parte sem fazer parte.

Talvez esse faz de conta seja o início da explicação necessária para se entender porque mais de 800 mil pessoas cometem suicídio todos os anos, ou porque 20% da população sofre de depressão crônica, ou porque milhões se drogam e morrem numa outra forma de suicídio.

Diante de uma realidade que enquanto submete milhões à condições miseráveis mantém os privilégios de poucos, que discrimina e exclui com enorme facilidade, resta a pergunta difícil, mas inevitável:

Afinal, fazemos parte do que?





Prof. Péricles

sábado, 20 de fevereiro de 2016

A NECESSIDADE DE FAZER PARTE


O ser humano é um ser gregário, um animal social.

Seu instinto de sobrevivência o obrigou desde o início das eras a conviver em bandos como forma de superar o medo e suas próprias limitações.

Animal acanhado, lento tanto na terra como na água, desajeitado para subir nas árvores, mais fraco até do que um chipanzé, pouco enxerga e ouve mal.

Parecia uma sacanagem da natureza e candidato natural ao extermínio.

Mas, a capacidade de raciocinar, mesmo primitiva e insipiente, somada ao instinto de sobrevivência o fez grupal, e dessa união surgiu a força para prosseguir, não virar jantar e, ao contrário, tornar-se o maior predador da face da Terra.

Porém, viver em grupo tem seu preço.

Ao viver em grupo ele ganha muito, mas também perde.

Talvez, sua maior perda seja a sua liberdade natural, radical e plena, assumindo a liberdade relativa que o viver em grupo lhe permite.

Ingenuamente alguns dizem que são livres. Não o são. São relativamente livres em função direta com as leis que regulam sua vida.

Outro preço caro a ser pago é a rebeldia, o sentimento de inutilidade ou de insuficiência, já que, em essência, a inteligência o torna questionador.

Nenhuma formiga obreira jamais parou pra pensar se é justo o trabalho que faz para o bem do formigueiro.

Nenhum zangão, até hoje, botou as mãozinhas na cintura e perguntou se ele é apenas um objeto sexual.

Os animais irracionais gregários, como abelhas, formigas, cupins, pinguins, elefantes, etc. não raciocinam, não possuem consciência, muito menos simpatias ou antipatias. Vivem e apenas vivem, multiplicam-se e morrem.

Outro problema a destacar é que o homem não gosta nem confia nos outros homens.

O homem se suporta, mas não se gosta.

Uma prova? O casamento e o surgimento da família.

A família se origina na união de apenas duas pessoas e é a tentativa humana de criar um grupo privado e suportável dentro do grupão social e insuportável.

Também foi aqui que surgiu o machismo, pois é onde o homem pode exerce seu poder, aquele mesmo que lhe é negado no grupão e impor a autoridade que lá fora não tem.

Mas, voltando ao grande grupo, essa característica gregária da espécie cria a sensação de que o que importa é “fazer parte”.

As maiores dores humanas nascem do sentimento de não “fazer parte”.

A solidão é o sentimento de não fazer parte de nada.

A paixão é a tentativa de fazer parte das necessidades do outro.

As drogas nascem também disso tudo.

O dependente químico geralmente se vê como um estranho no ninho.

Quanto mais o grupo o rejeita, critica e abomina mais ele deixa de fazer parte.

Para o dependente químico o grande grupo vai progressivamente perdendo seu encanto e ele sente-se no céu da liberdade, enquanto na fase inicial do consumo da droga, e no inferno da solidão e da morte, na fase final da dependência.

É por isso que o tratamento para a maior parte de nossas doenças sociais como drogas, preconceito e ódio é a política de inclusão e não a exclusão ou repressão.

O que o homem mais teme não é a morte, é a rejeição.

Ser rejeitado é o oposto do “fazer parte”.





Prof. Péricles

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A INCÔMODA PRESENÇA DOS INDÍGENAS NO BRASIL


Por José Ribamar Bessa Freire

O assassinato do bebê Kaingang é um entre os muitos cometidos contra os indígenas

Embora estarrecidos, temos de admitir que pertencemos à mesma família humana do jovem que degolou o bebé Kaingang de dois anos na rodoviária de Imbituba (SC).

Compartilhamos, envergonhados, a mesma identidade nacional do suspeito do crime, Matheus Silveira, o Teto, 23 anos, que está preso.

Já para a Polícia, esse é apenas o caso de um “usuário de drogas, que sofre de distúrbios mentais“. Será?

O delegado ouviu familiares e ex-colegas do Colégio Caic. Não concluiu o inquérito, mas já adiantou não ter visto conotação racista no crime, embora admita que o assassino estava “incomodado com a presença dos indígenas no local“.

Parece legítimo ir além do fato policial ou do diagnóstico médico e indagar a origem de tal incômodo. Para isso, convém identificar o lugar do índio na sociedade nacional, na visão do brasileiro médio, o que é definido na fala e no silêncio, nas ações e omissões de entidades como escola, mídia, museu, família, igreja, partidos políticos, associações de classe, tribunais, polícia, monumentos e até nas comemorações que definem o que deve ser lembrado ou esquecido.

A presença incômoda do índio não é só na rodoviária, mas no âmbito nacional.

Isso foi explicitado, em 1900, pelo presidente da Comissão do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, o engenheiro Paulo de Frontin. No discurso oficial de abertura, ele falou como representante da nação:

“O Brasil não é o índio; os selvícolas, esparsos, ainda abundam nas nossas majestosas florestas e em nada diferem dos seus ascendentes de 400 anos atrás; não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los”.

Não houve qualquer contestação à proposta anunciada diante do cardeal que celebrou missa campal na Praia do Russell. Afinal, sem índios, suas terras ficam disponíveis no mercado.

O Estado neobrasileiro assumia desta forma, a política colonial que originou no continente americano a “maior catástrofe demográfica da história da humanidade”, segundo os demógrafos da Escola de Berkeley, que calculam em 10 milhões a população indígena, em 1500, no território que é hoje o Brasil.

No primeiro século de colonização houve 90% de despovoamento, segundo W. Borah, com refinados métodos de análise.

Uma carta, de 5 de janeiro de 1654, do vigário do Pará, cônego Manoel Teixeira, de 70 anos, escrita no leito de morte, calcula que “mais de dois milhões de índios de mais de quatrocentas aldeias” foram extintos “a trabalho e a ferro”. Seu autor confessa “grandes injustiças e crueldades contra os índios“, povoações incendiadas, “tirando-os de suas terras com enganos”.

Como qualquer documento histórico, este deve ser submetido à crítica, mas não pode ser ignorado, como querem os que o acusam de “vitimismo” ou de “fantasioso”.

Pesquisa do Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) avaliou o papel da escola, da mídia e de outras instituições na imagem que os brasileiros têm dos índios.

Foram mais de 200 entrevistas com pessoas que nunca visitaram uma aldeia, mas têm opinião firme sobre o lugar dos índios no Brasil. Para um deles, com curso universitário concluído, os índios são “preguiçosos”, “bêbados”, “entrave para o progresso”, “um câncer que deve ser extirpado do Brasil”.

O curioso é que essa imagem não coincide com a da própria mãe do entrevistado, dona de casa com apenas o ensino fundamental.

Algumas respostas nos permitiram verificar que o preconceito se manifesta, talvez com mais força, naquelas pessoas com escolaridade avançada, que tem mais acesso à mídia. Se isso se confirma, quanto mais escola e mais mídia, maior é o preconceito.

Esse é um dado a ser pensado no momento em que se discute a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e se pretende abrir uma brecha para a história indígena, tradicionalmente ausente da escola.

Uma oposição histérica berra na mídia: – E a Mesopotâmia? E o Egito? – como se fossem temas incompatíveis.

O silêncio cúmplice da escola e de parte da mídia evidencia que o discurso de Paulo de Frontin continua sustentando ideologicamente a virulência.

No confronto entre os que não podem esquecer e os que não querem lembrar, é preciso construir “outro tipo de memória”, como quer Boaventura Santos.



José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio).



segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

ATIRE A PRIMEIRA PEDRA


Numa das mais sensacionais passagens bíblicas, Jesus é confrontado por seus inimigos com relação à observação dos costumes e tradições de seu povo.

Diante de um considerável público, uma mulher acusada de adúltera e prática de prostituição é levada até ele. O pregador é questionado sobre ser  correta ou incorreta a aplicação da pena de morte por apedrejamento.

Todos conhecem o final da história.

Sem se abalar Jesus concorda com a execução, desde que tivesse coragem de atirar a primeira pedra aquele que jamais tivesse errado.

Segundo os evangelistas, um a um, os “ávidos por justiça” foram jogando suas pedras ao chão e se retirando cabisbaixos.

Por fim Jesus libera a mulher e pede que ela se cuide.

Essa belíssima história (segundo alguns acrescentada aos evangelhos apenas no século IV ou V) apresenta inúmeros pontos para reflexão.

O principal deles é de que existe uma relação direta entre a aplicação da justiça e a condição moral de quem a exige, seja indivíduo ou coletivo.

Aplicando essa moral aos tempos modernos, especialmente à questão política do Brasil seremos obrigados a concluir que poucos poderiam atirar a primeira pedra.

Todos costumam lamentar as consequências, mas poucos sejam pessoas ou instituições podem jogar a primeira pedra nos artífices do golpe militar, por exemplo.

O STF foi do “lavo as mãos” à cumplicidade.

A mídia, em ampla maioria, não só não usou seu enorme poder para defender a democracia como ainda apoiou e, de certa forma, exigiu que o golpe fosse dado, além de calar sobre o arbítrio e a violência que se seguiu.

O cidadão comum preferiu fazer de conta que o problema não era dele, pois que, ao cidadão “de bem” bastaria cumprir suas obrigações e tocar sua vida adiante.

Algo muito parecido ocorre com a questão da corrupção, atualmente.

Falsos escandalizados (como falsos eram os que utilizavam os serviços das prostitutas no privado e depois defendiam suas execuções em público) clamam contra a corrupção como se ela tivesse aparecido só agora, como uma grande novidade.

Acusam políticos, partidos, autoridades, o clima e o carnaval, a chuva, e negam sua contribuição para o caos, como se fossem alheios as causas.

Clamam por justiça como se não fizessem parte do jogo.

De forma hipócrita, boa parte de nossa população e a mídia “esquece” que a corrupção é tão antiga quanto o próprio Brasil.

Portugal era conhecido no século XVI como o Estado mais corrupto da Europa e esse mesmo Estado colonizou o Brasil fiel às suas próprias condições éticas.

A construção de Salvador, primeira capital do Brasil, inaugurada em 1549, custou mais que o dobro do que o Rei tinha calculado inicialmente, culpa do superfaturamento, desvio de verbas e outras diabruras.

D. Pero Fernandes Sardinha, primeiro bispo do Brasil e poderosa voz política nos nossos primeiros anos, veio pra cá porque o Papa simplesmente não sabia mais como controlar seus atos corruptos.

Duarte da Costa segundo governador-geral do Brasil foi preso ao colocar os pés em terra na volta para Portugal, acusado de inúmeros ilícitos aqui na colônia.

Corrompemos os índios para roubar suas terras, os africanos para que vendessem seus iguais como escravos, e muitos imigrantes trazidos para a atividade agrícola como meeiros, mas submetidos a uma situação de quase escravidão.

Negociamos nas sombras para destruir um país, o Paraguai, e repartir seus despojos, no século XIX, da mesma forma que corrompemos o presidente da Bolívia para se apoderar do Acre no início do século XX.

O voto de cabresto, os currais eleitorais, o voto de mortos, foram usados à exaustão por décadas.

Recebemos dinheiro ilícito do contribuinte norte-americano para construir Volta Redonda e deixamos ricos os militares da ditadura paraguaia para construir Itaipu se apoderando de uma energia barata e sacaneando a Argentina.

O brasileiro médio se indigna quando alguém tenta corromper sua filha, mas, tenta corromper as filhas dos outros o tempo todo.

Vota em corrupto e depois faz caras e bocas como se o congresso fosse eleito por alienígenas.

Se diz malandro e acredita no “jeitinho brasileiro” quando isso lhe interessa.

Não, de forma alguma se está a defender a corrupção.

Todo ato corrupto é violento de alguma forma e injusto por natureza.

Jamais se fará do ilícito um ato lícito.

Toda corrupção deve ser castigada, mas toda corrupção, mesmo, não só a do outro.

Para começar deveríamos questionar é, quem afinal, pode realmente jogar a primeira pedra?

O combate à corrupção, da mesma maneira que o mestre propôs ao combate à prostituição de seu tempo, se dá pela transformação íntima de cada um e da superação de suas fraquezas, muito mais do que pela repressão e o dedo em riste que aponta para o outro.

Antes de qualquer coisa devemos combater a nossa própria corrupção.



Prof. Péricles

sábado, 13 de fevereiro de 2016

A ASSOMBRAÇÃO BERNIE SANDERS


Por José Inácio Werneck


Ele está para completar 75 anos, é meio careca e o que resta de seus cabelos brancos está sempre despenteado, é um pouco curvado, usa óculos, é um judeu casado com uma católica, diz não ser “particularmente religioso”, admira o Papa Francisco, seu pai era um imigrante pobre da Polônia, sua mãe nasceu nos Estados Unidos filha também de imigrantes pobres, um da Rússia e outro da Polônia, tem um irmão que emigrou para a Inglaterra e virou político lá, viveu em um kibutz em Israel mas opõe-se à política do Primeiro-Ministro israelense Benjamim Netanyahu, foi desde o início contra a invasão do Iraque, defende o direito ao divórcio e ao casamento gay, declara-se socialista – e atrai multidões a seus comícios.

Este é Bernie Sanders, o homem que vem povoando os pesadelos de Hillary Clinton na campanha das primárias democráticas para a eleição presidencial dos Estados Unidos, no próximo mês de novembro.

O fenômeno Bernie Sanders entre os democratas explica-se um pouco como o fenômeno Donald Trump entre os republicanos: ambos passam, a seu modo, uma imagem de autenticidade que falta a seus concorrentes nos dois partidos.

Trump é um bilionário que resolveu explorar os sentimentos menos generosos do povo americano – e encontrou eco entre um eleitorado esmagadoramente branco e carregado de preconceitos contra imigrantes hispânicos, negros, muçulmanos e outras minorias raciais ou religiosas.

Sanders apela para os sentimentos mais generosos do povo americano.

Ele foi criado no bairro de Brooklyn, na cidade de Nova York, mudou-se para o estado de Vermont, de tradições liberais, e lá fez carreira política, primeiro como prefeito, depois deputado e por fim senador. Um senador independente, nem afiliado ao Partido Democrata nem ao Partido Republicano, mas com uma história de votos sempre alinhados com os democratas.

Ele não se filiou ao Partido Democrata, embora agora queira ser seu candidato, porque na verdade se considerava e ainda se considera um socialista.

Não um socialista do tipo “o petróleo é nosso”, mas socialista, como ele mesmo explica, porque nos Estados Unidos há instituições sociais, como o Social Security, Medicare e Medicaid, que precisam ser defendidas do constante ataque da direita representada pelo Partido Republicano.

Um socialista porque defende o Plano de Saúde implantado pelo Presidente Barack Obama, conhecido como Obamacare, e que, mais, quer aprimorá-lo, transformando-o em um National Health Service – Assistência Médica governamental – como existe no Reino Unido, Dinamarca e outros países europeus.

Mais: Bernie Sanders quer educação universitária gratuita, garantida pelo governo.

Nada disto poderá acontecer se os bilionários nos Estados Unidos não passarem a pagar mais impostos.

É contra os bilionários, aqueles a quem ele chama de 1%, que se desenvolve a campanha de Bernie Sanders.

Poucos acreditavam que ele pudesse ser escolhido como o candidato democrata. Agora há quem julgue isto possível, embora tal opinião seja ainda minoria entre os comentaristas políticos.

O argumento sempre apresentado contra Bernie Sanders é que, se ele viesse a ser eleito, nada poderia realizar, pois bateria de frente com uma Câmara de Deputados e um Senado dominado pelos republicanos.

A isto Bernie Sanders responde que, se for eleito, será em consequência de uma “revolução política” que alterará também a composição da Câmara e do Senado e, mesmo que não a altere, terá enviado uma “mensagem” que os republicanos serão obrigados a aceitar, embora a contragosto.

O fato é que, com uma regularidade espantosa, Bernie Sanders vem arrastando multidões de 20 e 30 mil pessoas a seus comícios por todo o país – algo com que Hillary Clinton nem ousa sonhar.

Hillary, franca favorita a ser escolhida a candidata democrata em 2008, encontrou um obstáculo inesperado e irresistível num filho de um imigrante pobre, de cor negra, chamado Barack Obama.

Agora, ainda em sua tentativa de ser a primeira mulher a ser eleita para a presidência dos Estados Unidos, encontra também um obstáculo inesperado em outro filho de imigrante pobre. Não de cor negra, mas judeu.

Os Estados Unidos nunca tinham eleito um presidente negro e nunca elegeram um presidente judeu.

Será Sanders tão irresistível para Hillary quanto Obama foi?



José Inácio Werneck, jornalista e escritor, é intérprete judicial em Bristol, no Connecticut, EUA, onde vive.