sábado, 16 de setembro de 2017

NÓS GÓRDIOS


O Brasil está amarrado a quatro nós górdios que ninguém conseguiu ainda desatá-los e assim libertá-lo para se auto-construir como país soberano e livre.

O nó górdio vem de uma lenda da mais longínqua província romana, a Frígia, para onde eram levados condenados políticos sediciosos e na era cristã, os herejes. Era uma espécie de Sibéria, lugar de punição a opositores ou defensores de doutrinas heterodoxas.

A lenda diz que tendo ficado vacante o trono, foi escolhido como rei um camponês de nome Górdio. Veio com seu carro de bois. E para honrar Zeus e mostrar a humildade de sua origem, colocou a carroça dentro do templo. Amarrou-a com grossa corda com infindáveis nós de sorte que ninguém conseguia desatá-la. E assim ficou por muito tempo. Até que no ano 334 a.C. passou por lá Alexandre, o Grande. Curioso, foi ver os nós. Circulou ao redor. Não ficou refém dos nós da corda. Teve uma iluminação. Desembanhou a espada. Num golpe cortou a corda. Daí se derivou a conclusão de que uma ideia fora dos quadros convencionais – os nós – pode facilmente desatar os nós e resolver o problema.

O Brasil está amarrado a quatro nós górdios, sem que até hoje chegasse alguém que num corte libertasse o Brasil deles. Mas um dia ele irromperá.

O primeiro nó górdio é o etnocídio indígena. Eram cerca de 4 milhões. O extermínio os reduziu a 800 mil de hoje. O mais vergonhoso extermínio foi a decisão de Dom João VI em 13 de maio de 1808 de declarar uma guerra de exermínio contra os krenak (botocudos) do Vale do Rio Doce. Eram tidos indomesticáveis e por isso deveriam ser exterminados. Quase o foram. Alguns fugiram para dentro da mata. Eles se refizeram e hoje Ailton Krenak é um dos líderes maiores dos povos sobreviventes. A consequência: esses povos originários até hoje são discriminados como inferiores e suas terras com dificuldade são demarcadas e muitos deles são ainda assassinados.

O segundo nó górdio é o nosso passado colonial. Todo processo colonialista é violento: implica invadir terras, impor a língua, a política, a religião e desestruturar a cultura dos colonizados. A colônia criou duas instituições que se transformaram em estruturas mentais: a Casa Grande do senhor que tem o poder de vida e morte sobre os subordinados e a Senzala onde vivem os escravos e os peões sem qualquer direito. A consequência: sempre dependemos de fora, consideramos o que é estrangeiro melhor do que o nosso próprio produto. Deixamos surgir o sentimento de “vira-lata” sem autovalorização.

O terceiro nó górdio foi a escravidão. 4-5 milhões de africanos foram trazidos de África como escravos. Eram postos no pelourinho para serem vendidos como “peças” para servirem como trabalhadores no engenho ou serviçais nas cidades. Eram proibidos de constituir família. Os filhos logo que cresciam eram vendidos para longe e assim romper o laço de afeto entre a mãe e os filhos e filhas. Foram tratados com crueldade como a animais. Consequência: a falta de respeito aos outros, a discriminação e o ódio que grassa na sociedade contra os negros e a seus descendentes. Isso perdura até os dias de hoje. Jessé Souza em sua obra sociológica enfatiza que os descendentes da Casa Grande não apenas os mantém nas periferias mas os humilham e desprezam. Apenas o Governo Lula-Dilma fez alguma reparação para com eles, criando cotas nas universidades e nas escolas técnicas e uma universidade UNILAB em Redenção no Ceará.

O quarto nó górdio que obnubila a realidade brasileira é o patrimonialismo associado à corrupção. O patrimonialismo significa que as oligarquias consideram como privado o bem público, ocupam altos postos do aparelho do Estado, controlam as políticas públicas, entram em consórcio com empresas privadas para realizarem projetos do Estado, ganhando propinas pela mediação ou pelo superfaturamento das obras. Aí corre solta a corrupção que foi naturalizada. Somente nos últimos tempos pela Lava Jato os donos das grandes empresas e políticos dos mais altos escalões foram desmascarados e muitos deles postos na prisão. Esse nó górdio é o mais difícil de ser desatado pois se infiltrou em toda a sociedade como pertencendo ao negócio e ao nosso ser brasileiro.

Se o Brasil quiser construir seu próprio caminho, ganhar autonomia e contribuir para o devenir da nova fase planetária da Terra, deverá cortar estes quatro nós. Um governo com forte liderança e coragem e com sentido de nacionalidade poderá cortar esses nós, como condição de realizarmos o sonho brasileiro.

Não perdemos a esperança de que esse dia chegará.

Energias ponderosas estão impulsionando nesta direção.



Por Leonardo Boff, teólogo, escritor e professor universitário

domingo, 10 de setembro de 2017

OS FURACÕES PASSAM



Mensagem em nome de um brasileiro chamado Carlos André Montenegro, que mora e trabalha em Miami há dois anos, circula pela internet destacando as medidas tomadas pelo estado para evacuar a região sul da Flórida diante da chegada do furacão Irma.



São milhões de pessoas evacuadas por terra e por ar, com ordem nas estradas e companhias aéreas oferecendo passagens a preços módicos (98 dólares) para que o maior número possível de pessoas possa abandonar a região em ordem e com tranquilidade.



Além disso, hotéis que receberão por alguns dias essa quantidade impressionante de pessoas libera o wi-fi e a programação de tv a cabo, especialmente às voltadas para crianças, no sentido de que, a estada que poderia ser de terror transcorra da maneira mais agradável possível.



Ressalte-se que o estado oferece ainda, transporte gratuito para os que estão sem condições financeiras ou de saúde para se locomover.



A mensagem termina com o autor lembrando a tragédia de 2011 na serra do Rio de Janeiro, especialmente Teresópolis, com milhares de vítimas fatais, onde o povo foi praticamente abandonado à sua própria sorte e, hoje, sabe-se, até o dinheiro enviado para a reconstrução das casas foi desviado por autoridades corruptas e imorais.



Lembramos também, da tragédia dos vendavais (ciclones), aqui no Rio Grande do Sul, que destelharam milhares de casas e que tiveram como respostas de nossos empresários o aumento do preço da lona e dos materiais de construção.



Não há espaço para ingenuidade e sabemos que, certamente, o governo da Flórida também tem seus esqueletos no armário, mas, ao menos em tempos de tragédia parece haver entre as comunidades norte-americanas a esperança de que não serão esquecidos pelas autoridades.



Parece não ter sido isso que aconteceu em Nova Orleans com o furacão Katrina, mas...



Parece que, na hora das tragédias é que se conhece a verdadeira face das pessoas poderosas que podem auxiliar (ou não) os mais carentes. Não é na hora da campanha eleitoral, ou na demagogia de cada dia, mas, nessas horas é que a verdade se escancara.



O povo americano sofre anualmente com a temporada dos furacões, mas, talvez mais sofrido seja o povo brasileiro, livre de furacões, mas que sofre todos os dias os efeitos nefastos da ambição desmedida de uma das elites mais arcaicas e reacionárias do mundo.



Os furacões passam e os atingidos retornam aos seus lares.



Já as consequências da fome de poder, ganância e políticas públicas que esquecem dos mais fracos e que atingem milhões de brasileiros, não acabam e se cristalizam, numa temporada que alguns querem que não tenha fim.




Prof. Péricles







sábado, 9 de setembro de 2017

O ENIGMA GERALDO VANDRÉ


Desde 1985 Vitor Nuzzi se interessava pela trajetória do cantor e compositor Geraldo Vandré, o principal expoente da resistência musical à ditadura militar durante os anos 60 (na década seguinte, tal papel seria desempenhado por Chico Buarque).


Segundanista de Jornalismo, descobriu em 1985 o telefone do artista e disse estar querendo conversar com ele sobre um trabalho para a faculdade. Foi recebido no apartamento que Vandré ainda possui na rua Martins Fontes, próximo ao prédio que durante muitas décadas sediou o jornal O Estado de S. Paulo, na capital paulista. A conversa foi cordial, mas breve.


Quando Vandré se tornou septuagenário, em setembro de 2005, Nuzzi temeu que ele mergulhasse cada vez mais no esquecimento; decidiu, então, assumir como sua a tarefa de apresentá-lo às novas gerações.


Foi um trabalho longo e abrangente como bem poucas biografias brasileiras. Entrevistou mais de 100 pessoas (inclusive esta que vos escreve), garimpou informações em 51 livros e 29 jornais/revistas. Com isto, pôde reconstituir nos mais ínfimos detalhes a história do artista.


E a odisseia de Nuzzi, depois dos mesmos 10 anos que durou a descrita por Homero, teve final feliz, com o lançamento, no final do ano, de Geraldo Vandré: uma canção interrompida (Karup, 2015, 352 p.)


É um trabalho de fôlego e muito bem escrito; tem qualidade superior, na minha opinião, à das obras congêneres de biógrafos famosos como Fernando Moraes e Rui Castro. Quem não acompanhou a trajetória de Vandré, certamente se deslumbrará.


E mesmo os contemporâneos de sua trajetória ficarão conhecendo muita coisa nova.


Por exemplo, é inverossímil ao extremo que os responsáveis pelo FIC, com a espinha flexível que era marca registrada dos profissionais da Globo nos anos de chumbo, tivessem ousado guardarem para si as ameaças dos fardados, torcendo para que, espontaneamente, o júri não premiasse nem a Caminhando, nem a América, América, de César Roldão Vieira (outra que a caserna impugnara). Fala sério…


Quanto ao comportamento esquisito e errático de Vandré desde que voltou do exílio em 1973, todas as informações que Nuzzi levantou são conclusivas quanto ao fato de que Vandré não foi torturado antes de deixar o Brasil e dificilmente o terá sido na volta negociada para o País.


Estava em más condições psicológicas e com a saúde debilitada nos últimos tempos de exílio. Foi sequestrado discretamente pela ditadura no aeroporto e, um mês depois, a Globo o exibiu no Jornal Nacional como se estivesse desembarcando naquele instante.


Parece ter ficado 58 dias (antes e depois da entrevista ao JN) recebendo tratamento psiquiátrico.


A menos que algum militar, algum médico ou algum enfermeiro abra o bico, jamais saberemos o que aconteceu com Vandré enquanto esteve internado (rigorosamente isolado dos demais pacientes) numa clínica do bairro de Botafogo, RJ.


Em Aroeira, o narrador (Vandré) declara estar “escrevendo numa conta/ pra juntos a gente cobrar/ no dia que já vem vindo/ que este mundo vai mudar”. E alerta os marinheiros (os colonizadores portugueses) que está próxima “a volta do cipó de aroeira/ no lombo de quem mandou dar”.


Bonita é uma guarânia na qual um presumível guerrilheiro tenta explicar à sua amada que não a pode tomar naquele instante e (como poderá morrer seguindo o destino que escolheu) talvez ela só venha novamente a saber dele “se um dia encontrares alguém/ que te cante meus versos”.


Há outras. A mais explícita de todas, Terra plana, traz este desafio que o combatente lança a um militar: “Se um dia eu lhe enfrentar/ Não se assuste, capitão/ Só atiro pra matar/ E nunca maltrato não/ Na frente da minha mira/ Não há dor nem solidão/// E não faço por castigo/ Que a Deus cabe castigar/ E se não castiga ele/ Não quero eu o seu lugar/ Apenas atiro certo/ Na vida que é dirigida/ Pra minha vida atirar”.


A canção interrompida me fez cair a ficha: Vandré havia dado um duro danado para se tornar artista vitorioso e era exatamente isto que ele queria ser. Acreditava nos ideais da esquerda e era favorável à luta armada, mas nunca como causas às quais se pretendesse engajar como militante. Cansava de repetir que sua atuação não era partidária.


A sensibilidade de artista o levava a incluir tais fantasias em suas músicas, mas ele apenas se colocava imaginariamente no lugar dos revolucionários e dos guerrilheiros. Não queria ser uma coisa nem outra.


E lá se foi outra das fantasias que nos ajudavam a manter a sanidade durante aqueles anos terríveis! Ainda assim continuo lamentando —e muito!— que esse extraordinário artista tenha caído numa armadilha da História, acabando por ser destruído.


Nunca haverá desculpa para os que fizeram desabar tamanha tempestade em cima de um músico, apenas por ele ter composto uma canção que expressou o sentimento de todo um povo.


Como bem lembrou o Benito de Paula, “esse trapo, esse homem um dia foi um rei”.




Celso Lungaretti, jornalista e escritor, escreveu o livro Náufrago da Utopia (Geração Editorial).



quinta-feira, 7 de setembro de 2017

COMEMORAR O QUE?


A independência política do Brasil ocorreu após um processo dirigido pelas elites brasileiras.


Nesse processo, a maior preocupação das elites, não era com a independência propriamente dita, nem com a situação de seu povo menos favorecido. Ao contrário, a independência se fez sob uma ótica quase obsessiva de se manter a escravidão no país que então iria nascer.


Para atingir esse objetivo obsessivo, as elites apostaram todas suas fichas na figura do Príncipe Regente, D. Pedro, a ponto de fazer nascer na América latina uma monarquia, sistema político totalmente estranho ao cenário americano e decadente no restante do mundo.


Fez-se a monarquia e D. Pedro foi coroado imperador, tudo para manter a escravidão, na forma desumana de exploração da mão-de-obra africana. Para isso, o novo governo chegou a assumir um compromisso por escrito com a Inglaterra de que iria sim acabar com a escravidão, mas só no dia de “São Nunca”.


O Brasil nasceu como país já demarcando fortemente as mais perversas características de seu caráter: um estado fascista, explorador e assassino.


Tudo para suas elites, nada para seus desgraçados.


Desgraçados que foram sistemática e perversamente mortos ao longo dos anos com as torturas da escravidão, nos sertões miseráveis de Canudos, na região do Contestado.


Quando não pode matar como gostaria, o estado fascista e elitista brasileiro usou todos os recursos da mentira e dissimulação como na Revolta da Vacina ou na Revolta da Chibata, para manter sua autoridade acima de qualquer reivindicação popular.


A torpeza de caráter dos dirigentes políticos brasileiros sempre foi exposta e imposta vencendo com todos os recursos da fraude mais baixa em eleições mentirosas como as da República velha.


Nossa classe média que sempre esteve no degrau mais baixo, muito mais próximo dos miseráveis do que dos poderosos, sempre foi subserviente, dócil e mais que isso, uma autêntica defensora dos interesses de seus amos e senhores.


Foi ela, nossa classe média, que forçou Getúlio a apertar o gatilho daquela arma, que cerrou fileiras nas marchas com Deus pela Pátria e Liberdade, que apoiou a ditadura e agora, contribuiu decisivamente para o golpe jurídico-midiático-parlamentar que depôs uma presidenta legitimamente eleita.


Ao longo dos tempos no Brasil se forjou uma classe média déspota e reacionária, talvez a mais hipócrita do mundo.


Engana-se quem pensa que todos nós somos brasileiros no sentido de igualdade. Não somos iguais e o Estado não se preocupa com todos. Somos como que reféns num gigantesco campo de concentração onde os senhores não nos lançam nas fornalhas, mas, exploram o trabalho e o talento, sugam a juventude e depois lançam os restos ao lixo de uma aposentadoria imoral.


O Estado Brasileiro não é brasileiro no sentido dos que nascem no Brasil, mas existe, serve e preocupa-se apenas e tão somente com suas elites e senhores e vende sistematicamente as riquezas do país a preço de bananas, e com isso, ao mesmo tempo que se delapida o país, fortalece-se a riqueza dos que já são ricos.


Aqui quem é nacionalista é mal visto e rotulado de subversivo e até é, realmente, tendo em vista que a ordem vigente é do entreguismo.


Por tudo isso, é de se perguntar, comemorar o que em 7 de setembro?





Prof. Péricles

NO MEU NÃO


Por Eugênio José Guilherme Aragão



O título desta nota não contém erro ortográfico. Remete a uma das frases preferidas de Rodrigo Janot em legítimo mineirês, também disseminada como “lei da nudez": "nu d'ês é bão, no meu não!".

A frase denuncia escapismo, atitude de quem não gosta de enfrentar riscos a si. Quem a escolhe como moto de vida profissional demonstra não ser um líder, no sentido próprio da palavra, alguém que sobressai por virtudes que possam ser tomadas como exemplo a ser seguido pelos outros. Nenhuma sociedade sobreviveria regulada pela “lei da nudez" e, muito menos, uma instituição.

O episódio revelado em fragmentos na noite de ontem é mais um espécime prático de aplicação da lei da nudez. Rodrigo Janot se contorceu para explicar o inexplicável e concluir: "no meu não".

Reconheceu o óbvio: as gravações de Joesley foram fabricadas em casa, por instigação da equipe do Procurador-Geral da República e sem autorização judicial. Insistiu, porém, em que, como provas, seriam íntegras, plenamente aproveitáveis. Afinal, não seria a "suposta" molecagem de Marcelo Miller, seu ex-auxiliar, que colocaria tudo a perder. "No meu não".

Nenhum penalista, ainda que iniciante, subscreveria a ressalva sobre a integridade da escuta ilegal de Michel Temer. Escutas ambientais só são lícitas, sem autorização judicial, se forem tomadas por quem, partícipe no interlóquio, queira usá-las em defesa própria. Este é o entendimento solidamente firmado pelo STF. Não foi este o caso das gravações de Joesley.

O que se tornou público ontem foi o uso de um prospectivo delator premiado como longa manus do ministério público, clandestinamente plantado no domicílio alheio, para ali extrair informações da boca de um alvo de devassa política. Sim, porque aquilo que estava em curso quando da gravação do alvo não podia ser chamado de “investigação”. Esta pressupõe fato determinado, completado no passado. Já a devassa é a busca frenética de um fato comprometedor. É o que a Força Tarefa da Lava Jato tem feito incessantemente, em Curitiba e em Brasília. Usar um prospectivo delator premiado para essa tarefa é iniciativa do melhor estilo mafioso. Lembra cena típica de filme sobre a “Cosa Nostra”, em que um pequeno batedor de carteira com sonhos de grandeza quer entrar para a organização e é submetido a teste de valentia e lealdade: obriga-se o pobre coitado a matar um policial, para mostrar do que é capaz, como um aperitivo de sua utilidade para a organização. Joesley, ao que tudo indica, foi usado como o batedor de carteira. Foi obrigado a oferecer à Procuradoria Geral da República um aperitivo para conquistar a premiação. O aperitivo era Temer.

Ninguém no grupo da Lava Jato pode dizer que não sabia dessas práticas. Muito menos o chefão.

O uso de prospectivos delatores para a escuta ambiental não autorizada tem sido recorrente. Foi assim com Bernardo, filho de Nestor Cerveró, que gravou Delcídio do Amaral; foi assim com Sérgio Machado, que gravou José Sarney, Renan Calheiros e Romero Jucá. No caso de Delcídio, a crueldade foi requintada: após ter, este, fechado negociação com a Procuradoria Geral da República, por acordo do qual constava cláusula de sigilo por três meses, deu-se que a cláusula não foi aceita pelo relator, Ministro Teori Zavascki, por não encontrar amparo legal. Por um desses acasos da vida, a gravação de Delcídio foi tornada pública logo a seguir, impedindo o senador a voltar atrás no acordo de delação.

Entre as patacoadas do acerto constava declaração do senador de que Dilma Rousseff teria, com a nomeação de Marcelo Navarro para o STJ, visado a obstar investigações contra a construtora Odebrecht. Uma hipótese sem qualquer lastro, como, agora, reconheceu a polícia federal, mas que serviu para abrir inquérito contra a Presidenta às vésperas da votação da admissibilidade do impeachment no Senado, com clara finalidade de desgastá-la perante a opinião pública.

O que causa perplexidade é o cinismo da gestão de Rodrigo Janot à frente do Ministério Público Federal, quando insiste em que sua atuação tem sido estritamente “técnica”. Façam-me rir. Já o disse alhures, o técnico é uma forma de dar roupagem de isenção a decisões que são essencialmente políticas.

O direito usa a técnica como meio de legitimar essas decisões. Mas, decidir sempre é optar. O julgador opta entre, no mínimo, duas teses: a do autor e a do réu, ambas revestidas de fundamentos jurídicos e, portanto, ambas plausíveis se sustentadas com boa técnica. A independência do juiz está no intervalo entre essas teses, que tem o nome de lide. Não pode decidir fora dela, pois seria decidir “ultra petita”, como se diz no bom jargão profissional. A opção, quando não balizada por sólida jurisprudência, é algo completamente subjetivo. E o juiz faz política ao optar. Assim também o faz o ministério público quando decide, ou não, levar um caso adiante.

Mas política não é sempre molecagem. Ela funciona como tempero necessário para preservar as instituições e a governabilidade. Pressupõe-se de quem vai decidir que tenha equilíbrio e senso de justiça, de correção, de critério – virtudes que só se adquirem com muita experiência, ao longo de anos de atuação. Por isso, não é crível tenha o Procurador-Geral da República deixado um grupo de procuradores verdes, sem seu cabedal, rolar solto. O procurador Marcelo Miller, que, pelo que se anuncia, estaria por detrás dessa “técnica” de exigir aperitivos de prospectivos delatores premiados, com meros treze anos de casa, não pode ter agido por conta própria. As informações colhidas por sua “técnica” foram usadas não só em juízo pelo chefe da instituição, mas, também, pela instituição-corporação (hoje é difícil divisar entre ambas), para fazer seu barulho e adquirir musculatura – política(neste caso, com sentido de molecagem mesmo).

Das duas uma: ou o Procurador-Geral se revelou um grande irresponsável, deixando o barco correr enquanto gente de sua equipe pintava e bordava com falta completa de ortodoxia técnica; ou então ele era parte da trama, aquiescendo com a “técnica” de Miller.

Por erro de cálculo estrutural, desabou o edifício que homiziava a política da “técnica” de Janot. Ficou exposta à curiosidade coletiva. Fez tudo errado. Confiou em quem não devia ter confiado. Omitiu-se na defesa da democracia e deixou de exercer o que a Constituição lhe atribuiu – ser "Chefe do Ministério Público da União" (art. 128). Preferiu as intrigas da politicagem interna e o discurso corporativo fácil. Revelou-se um ignorante no jogo da macropolítica. Traiu quem lhe dera a mão, não para beneficiar quem quer que seja, mas para tirar o país da polarização inaugurada com o processo do chamado “Mensalão”.

A "lei da nudez" falhou e não tem como salvar o do Rodrigo Janot.



sábado, 2 de setembro de 2017

GUERRA NA VENEZUELA, ESTILHAÇOS AMAZÔNICOS


Por Jaime Sautchuk


Começando pelo começo, não devemos ter dúvidas de que o tresloucado presidente estadunidense é capaz de cumprir a promessa. A indústria de armamento dos Estados Unidos, que injetou muita grana na campanha eleitoral dele, está mandando a conta, pedindo alguma guerra que encha seus cofres com bilhões de dólares.


Pode estar muito próxima outra guerra imperialista em floresta tropical


Nessa sinistra empreitada, Trump terá outros apoios internos em seu país, entre políticos, militares e diplomatas, por exemplo. E também externos, entre os quais, por certo, de alguns mandatários sul-americanos; inclusive do atual governo golpista de Michel Temer, que já tem se manifestado a favor da direita venezuelana, igualmente golpista.


Todos fingem ignorar as imediatas consequências que um conflito desta natureza traria ao Brasil, queiram eles ou não. A vasta fronteira terrestre entre os dois países, por si só, já é um convite ao compartilhamento de um conflito armado na região. Esses limites vão do Sistema Parima de Serras (onde está o Pico da Neblina, ponto mais elevado do Brasil) no sentido oeste, pela Planície Amazônica, até encostarem na Colômbia.


No lado brasileiro, a área lindeira tem a cidade de Pacaraima, em Roraima, que já é o ponto de entrada de imigrantes venezuelanos e, em caso de guerra, será certamente transformada em centro de refugiados.


Mas, o restante é habitado por povos da floresta. Entre os quais alguns grupos indígenas binacionais, como é o caso dos Yanomamis, sobre os quais um conflito terá consequências pouco previsíveis. O certo é que essas populações só passaram a ter apoio oficial do estado venezuelano nos governos de Hugo Cháves, no regime hoje liderado por Nicolás Maduro.


De quebra, vai sobrar pra Guiana Francesa e pro Suriname. Vizinhos nas águas territoriais no Oceano Altântico. Porém, o que é mais grave, vai sobrar também pra Guiana. Cuja existência nunca foi reconhecida pelos venezuelanos de todas as cores; que pleiteiam territórios daquela ex-colônia britânica. Em verdade, mais da metade do país faz parte do Território Essequibo; que pertenceria à Venezuela, segundo tratados internacionais, e é rico em petróleo.


Aliás, nessa região está também a cidade de Lethem, onde funciona uma zona franca que atrai turistas e comerciantes de Boa Vista (RR) e Manaus (AM); durante o ano inteiro. Segundo a Polícia Federal. Em média, todos os dias 4 mil automóveis brasileiros cruzam a fronteira da Guiana com destino a esse centro de compras.


Ou seja, toda nossa divisa norte estará em meio ao conflito. E, com certeza, milhares de brasileiros pegarão em armas contra os invasores ianques e seus aliados internos na Venezuela.


São, portanto, muitos os estilhaços que atingirão o Brasil, caso essa guerra imperialista venha mesmo a ocorrer.




Jaime Sautchuk, é jornalista.