quarta-feira, 29 de abril de 2015

MAIS MÉDICOS



Por Frei Betto

O programa Mais Médicos conta, hoje, com 18.247 profissionais atuando em mais de 4 mil municípios do país. Neste ano, o número de brasileiros (as) a serem atendidos chegará a 63 milhões.

O atendimento dos médicos inscritos no programa chega a ser personalizado, segundo a metodologia do sistema Médico da Família, que permite ao profissional cuidar, não tanto da doença, e sim da prevenção.

A saúde é um direito e a sua progressiva mercantilização põe em risco a vida de inúmeras pessoas que não podem pagar pelo tratamento.

Pesquisa da UFMG-Ipespe constatou que 95% dos beneficiários entrevistados estão satisfeitos com a atuação dos médicos, dos quais 84% estão no Norte e Nordeste.

Naquelas regiões, 86% dos municípios têm ao menos 20% de sua população em situação de extrema pobreza.

Vale observar que, nas vagas disponibilizadas pelo programa, a prioridade cabe a médicos brasileiros. Como os que se inscreveram no Mais Médicos são insuficientes para atender a população, o governo destinou as demais vagas a brasileiros graduados no exterior e, em seguida, a médicos estrangeiros. Há profissionais de 50 nacionalidades atuando no Brasil.

Os cubanos são cerca de 14 mil, presentes em 2.700 municípios. Em geral, os mais pobres e mais distantes dos grandes centros urbanos.

Os médicos cubanos trazem a experiência de solidariedade e cooperação internacionais, já que Cuba presta serviços médicos, hoje, em 67 países.

Até o governo dos EUA elogiou a atuação dos profissionais da ilha socialista no combate à epidemia de ebola na África.

Não são apenas médicos que o Brasil importa de Cuba. Além de medicamento para a hepatite B, desde o governo Collor nosso país compra a vacina de combate à meningite, única no mundo.

O projeto ora apresentado no Senado contra o Mais Médicos é um acinte a tantos brasileiros que, pela primeira vez, recebem atendimento domiciliar de saúde.

O direito à saúde está acima de ideologias. Partidarizar um programa que traz benefícios a quase 1/3 da população brasileira é um crime de lesa-pátria.

O programa, que este ano chegará a mais de 72% dos municípios do país, atende prefeituras de todos os partidos, inclusive 66% (452 cidades) das que são administradas pelo PSDB.

Cuba conta com 6,9 médicos por 1.000 habitantes, um dos maiores índices do mundo.

O Brasil, com 2/1.000; e os EUA, 3,2/1.000.

Com a reaproximação EUA-Cuba, milhões de estadunidenses estão de olho no chamado “turismo médico”, ou seja, a possibilidade de se tratarem em Cuba, já que nos EUA o acesso ao sistema médico-hospitalar é caro e difícil para quem não dispõe de recursos.

O convênio do Brasil com Cuba é monitorado pela OPAS (Organização Panamericana de Saúde), braço da OMS (Organização Mundial da Saúde) para as Américas.

A OPAS tem 110 anos de serviços prestados. E longa tradição de seriedade e qualidade.

terça-feira, 28 de abril de 2015

MARANHÃO HOMENAGEIA DEMOCRATAS, NÃO DITADORES



Por José Carlos Ruy *


Foi o que o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB - ele é o primeiro governador comunista da história brasileira) acaba de demonstrar ao determinar a mudança nos nomes de escolas antes designadas com o nome de ditadores e personalidades da ditadura militar de 1964.

Flávio Dino expôs esse caráter no comentário sobre a mudança de nomes que publicou nas redes sociais. “Pronto, as nossas escolas não mais homenageiam ditadores que violaram a Constituição”, escreveu em seu perfil no Facebook.

A mudança foi publicada no Diário Oficial do Poder Executivo do Maranhão nesta terça-feira (dia 31) – e a escolha dessa data reforça o sentido da mudança. É a data em que o Brasil lembra os 51 anos do rompimento da legalidade democrática, a deposição de João Goulart da presidência da República e o início da ditadura millitar de 1964.

O governo do Maranhão, dirigido por Flávio Dino cumpre dessa maneira o que a lei determina, através do Decreto 30.618 de 02/01/ 2015; entre outras coisas ele proíbe que sejam usados, para designar bens públicos, nomes que constem no Relatório Final da Comissão da Verdade acusados de terem cometidos crimes de tortura, assassinatos de presos políticos e outras violações dos direitos humanos durante a ditadura militar.

A secretaria estadual de Educação do Estado do Maranhão relacionou dez escolas cujos nomes foram mudados e criou uma Comissão de Mudança de Nomes para, democraticamente, escolher os novos homenageados, que sejam personalidades que contribuíram com a construção da identidade educacional e cultural, nos níveis municipal, estadual ou federal e tenham reputação ilibada de acordo com a Lei da Ficha Limpa.

Segundo Flávio Dino, “o relatório [da Comissão da Verdade] aponta graves infrações aos direitos humanos cometidos durante esse período e nomeia os responsáveis por esses crimes. O Estado do Maranhão não mais homenageará os responsáveis por crimes contra a humanidade”. Isso não é razoável, disse.

Flávio Dino tem razão. Além de todos os motivos políticos, convém ressaltar o caráter pedagógico – democraticamente pedagógico –de sua medida.

Escolhas desse tipo são reveladoras das opções políticas de quem as faz. Nas escolas do Maranhão onde ocorreu a mudança, seis tinham o nome do general Castelo Branco, o primeiro ditador de 1964; duas tinham o nome do segundo ditador, general Artur da Costa e Silva; e outras duas traziam o nome do terceiro general presidente, Emílio Garrastazu Médici.

Elas trazem agora o nome de personalidades democráticas – entre elas o educador Paulo Freire e o poeta Viníciu de Moraes. Trazem, agora, nomes de brasileiros que contribuiram para a construção da democracia e, longe de homenagear ditadores, honram aqueles que lutaram pela democracia e pelo bem estar dos brasileiros.

São nomes que as crianças e também os cidadãos do Maranhão aprenderão a amar cada vez mais, e não a temer, como ocorria com os nomes dos ditadores. Este é o sentido pedagógico mais profundo da alteração feita no Maranhão. E também o exemplo que o novo governador dá para o Brasil!



José Carlos Ruy é Jornalista, é da Comissão Editorial da revista Princípios.


domingo, 26 de abril de 2015

TRAGÉDIA NO MEDITERRÂNEO


De onde vem esses corpos que boiam nas águas como peixes mortos, inchados?

De onde surgem tantas manchas escuras nas águas. De todos os tamanhos e idades, homens, mulheres, velhos, crianças?

Mais de 900 mortos em naufrágio nas águas frias do Mediterrâneo, na noite de 20 de abril.

Pensem nas crianças que mesmo nas maiores dificuldades buscam por brinquedos no uso da imaginação que liberta. Estão mortos como seus sonhos.

Como previam os piores pesadelos de seus pais.

De onde vem tantos mortos? Tantos corpos em vão?

Eles vêm da África. Fugindo das guerras. Fugindo da fome.

Buscam na Europa algum tipo de esperança.

Enfrentam viagens impossíveis, em barcos velhos e ilegais.

Balançam com a fúria das ondas e o rangido do casco é como música macabra.

Mesmo com todos os perigos, enrolam seus trapos, abraçam suas crianças e partem.

Diz Netuno, o Deus dos mares, que a maior da ironia é que causa e consequência habitam na mesma geografia.

Mais de dois séculos de colonização violenta e arbitrária, espoliando na condição de metrópole povos pacíficos e indefesos, fizeram da Europa a causa de toda dor.

Foi a Europa, não Deus ou o destino que jogaram esses milhões de sombras, nas águas frias do Mediterrâneo.

As autoridades italianas disseram que o pior desastre com migrantes no Mediterrâneo, que causou a morte de cerca de 900 pessoas culpa do capitão e à sobrelotação do navio. Disseram que o barco colidiu com um cargueiro de bandeira portuguesa, e que após a colisão a imperícia do comandante e o pânico generalizado condenou a nau a um fim inevitável no fundo do Mediterrâneo.

As autoridades europeias, lideradas pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) querem criar uma política que represente uma reação mais humana ao êxodo de pessoas que viajam pelo mar da África e da Ásia para a Europa sem piorar a crise estimulando mais pessoas a partirem.

Mas, ainda ontem uma operação naval italiana no sul do Mediterrâneo, conhecida como “Mare Nostrum”, foi cancelada por causa do custo e da oposição interna aos resgates marítimos, que poderiam encorajar a imigração.

Mentem as autoridades. Mentem os bem trajados âncoras televisivos. Mentem todos aqueles que sonegam a verdadeira informação: a culpa da tragédia é da Europa que como vampiro sugou as riquezas e as esperanças dos povos dominados.

Omitem que batem as portas na cara dos imigrantes que, atualmente só encontram socorro nos portos da Itália.

Isso não começou hoje. É um pesadelo fomentado pela violência de dois séculos.

Netuno sabe. A Europa sabe.

Perguntem a ela nas noites sem lua, quantos corpos já engoliu.

Prof. Péricles


sábado, 25 de abril de 2015

O PAÍS DAS MIL E UMA MENTIRAS



Pedro Álvares Cabral fez de conta que chegou aqui sem querer, e a Espanha fez de conta que acreditou.

A Igreja mentiu que negro não tinha alma para apoiar a escravidão africana que lhe proporcionava lucros, e o resto, disse amém.

Os donatários mentiram que tinham interesse em vir para o fim do mundo e colonizar a Terra.

O Branco mentiu aos índios que era amigo e os padres mentiram que salvariam suas almas.

Os bandeirantes fingiram não ter encontrado ouro nas matas.

Os inconfidentes mentiram que lutariam pela independência do Brasil até a morte, mas fizeram acordos.

Os acordos foram cumpridos e criaram um mártir.

A elite agrária mentiu que a nação precisava de um imperador, quando apenas queria, manter a escravidão. E o povo se vestiu de súdito.

D. Pedro mentiu para os ingleses que acabaria com a escravidão no máximo em cinco anos e assinou que faria isso, sem nunca realmente pensar em fazer.

Também disse publicamente que jamais pagaria pela independência, mais pagou.

Durante 50 anos governo e aristocracia rural mentiram que iriam acabar com a escravidão criando leis ridículas de tapeação: Lei Euzébio de Queirós, Lei Visconde do Rio Branco, Lei Saraiva-Cotegipe e finalmente uma Lei que mantinha a exclusão e a miséria, mas foi chamada de Áurea.

As autoridades enganaram o povo fazendo do Paraguai um perigo maior do que era e isso justificou o maior massacra entre povos da América Latina.

Os proclamadores da República mentiram que estavam criando uma nação soberana e ratificaram a dependência econômica e acordos comerciais espúrios.

A primeira Constituição Republicana definia o voto como universal, mas determinava que mulheres e analfabetos, a imensa maioria, não tinha direito a voto.

Na virada do século rotularam os miseráveis de Canudos de bandidos, e a Revolta da Vacina de coisa inconsequente como birra de criança.

Prometeram para João Cândido que ninguém seria punido na Revolta da Chibata e quase todos os líderes morreram na cadeia.

Combinaram dia e hora para a Revolta Tenentista, mas deixaram apenas 18 homens pendurados no pincel, e foram mortos, quase todos, nas areias de Copacabana.

Anunciaram a morte de um candidato a vice, João Pessoa, como crime político gerando uma comoção nacional quando, era apenas, um marido traído que se vingava dos chifres, e isso deu início a Revolução de 30.

Já a Revolução Constitucionalista Paulista de 1932 não era revolução, nem constitucionalista e muito menos só paulista.

Mentiram que o Brasil tinha que entrar numa guerra que não era sua, a Segunda Mundial, e jovens brasileiros morreram por causa estranha e seus corpos ainda jazem em solo italiano.

Disseram que Jango era comunista e corrupto e dizendo defender a democracia deram um golpe de morte na própria democracia.

Assim nasceu a Ditadura Militar, mimada pela hipocrisia dos que diziam defender Deus, a Pátria e a família. A Ditadura não teve Deus, apenas demônios, vendeu a pátria e dividiu a família estimulando a delação.

Golpistas, fascistas, reacionários fizeram uma Ditadura que se dizia revolução e se auto-intitulava de "Redentora".

Criaram um gigante de papel que finalmente despertava, montado em capitais estrangeiros. Brasil, ame-o ou deixe-o, mas matavam antes que houvesse uma escolha. Ninguém segura esse país rumo ao abismo. Pra frente Brasil, agora vai. E fomos todos para o buraco de uma década perdida.

O fim da ditadura e a volta a normalidade levou 10 anos, recheada por uma paz falsa, como o atentado do Rio-Centro, cuja bomba-neném explodiu no colo de um militar a paisana.

Por dez meses fizeram valer a fraude do Plano Cruzado para vencer as eleições constituintes de 1986, e depois anunciaram uma Constituinte independente e democrática, mas criaram o “centrão” unindo as forças conservadoras que barrou todos os avanços populares.

Mentiram ao fazer um sociólogo Ministro da Fazenda e pai de um plano que não era seu, apenas para, novamente, ganhar uma eleição, em 1994.

Brasil, uma história de mentiras só poderia mesmo gerar uma nação mentirosa, onde o racismo é tão violento como em qualquer outro lugar, mas escondido em nome do orgulho de uma terra multirracial.

O maior perigo de conviver com as mentiras é acabar se acostumando com elas e o mais grave, gostando de ser enganado.

Deixa-se de ser vítimas para ser mansos.

O perigo é achar que quem mora lá no morro já vive pertinho do céu e por isso não é necessário lutar por um Brasil mais justo.

A história do Brasil não deve ser apagada por ser mentirosa, mas recontada, com suas mentiras entendendo-se quem as criou e com que objetivos.

A história não se repete, mas as mentiras sim.


Prof. Péricles

quinta-feira, 23 de abril de 2015

PONTO DEUS



por Leonardo Boff


Uma frente avançada das ciências, hoje, é constituída pelo estudo do cérebro e de suas múltiplas inteligências. Alcançaram-se resultados relevantes, também para a religião e a espiritualidade.

Enfatizam-se três tipos de inteligência. A primeira é a inteligência intelectual, o famoso QI (Quociente de Inteligência), ao qual se deu tanta importância em todo o século XX. É a inteligência analítica pela qual elaboramos conceitos e fazemos ciência. Com ela organizamos o mundo e solucionamos problemas objetivos.

A segunda é a inteligência emocional, popularizada especialmente pelo psicólogo e neurocientista de Harvard David Goleman, com seu conhecido livro A Inteligência emocional (QE = Quociente Emocional). Empiricamente mostrou o que era convicção de toda uma tradição de pensadores, desde Platão, passando por Santo Agostinho e culminando em Freud: a estrutura de base do ser humano não é razão (logos) mas é emoção (pathos).

Somos, primariamente, seres de paixão, empatia e compaixão, e só em seguida, de razão. Quando combinamos QI com QE conseguimos nos mobilizar a nós e a outros.

A terceira é a inteligência espiritual. A prova empírica de sua existência deriva de pesquisas muito recentes, dos últimos 10 anos, feitas por neurólogos, neuropsicólogos, neurolingüistas e técnicos em magnetoencefalografia (que estudam os campos magnéticos e elétricos do cérebro).

Segundo esses cientistas, existe em nós, cientificamente verificável, um outro tipo de inteligência, pela qual não só captamos fatos, idéias e emoções, mas percebemos os contextos maiores de nossa vida, totalidades significativas, e nos faz sentir inseridos no Todo. Ela nos torna sensíveis a valores, a questões ligadas a Deus e à transcendência. É chamada de inteligência espiritual (QEs = Quociente espiritual), porque é próprio da espiritualidade captar totalidades e se orientar por visões transcendentais.

Sua base empírica reside na biologia dos neurônios. Verificou-se cientificamente que a experiência unificadora se origina de oscilações neurais a 40 herz, especialmente localizada nos lobos temporais. Desencadeia-se, então, uma experiência de exaltação e de intensa alegria como se estivéssemos diante de uma Presença viva.

Ou inversamente, sempre que se abordam temas religiosos, Deus ou valores que concernem o sentido profundo das coisas, não superficialmente mas num envolvimento sincero, produz-se igual excitação de 40 herz.

Por essa razão, neurobiólogos como Persinger, Ramachandran e a física quântica Danah Zohar batizaram essa região dos lobos temporais de 'o ponto Deus'.

Se assim é, podemos dizer em termos do processo evolucionário: o universo evoluiu, em bilhões de anos, até produzir no cérebro o instrumento que capacita o ser humano perceber a Presença de Deus, que sempre estava lá embora não percebível conscientemente.

A existência desse 'ponto Deus' representa uma vantagem evolutiva de nossa espécie homo. Ela constitui uma referência de sentido para nossa vida. A espiritualidade pertence ao humano e não é monopólio das religiões. Antes, as religiões são uma das expressões desse 'ponto Deus'.



Sobre o Autor
Cursou Filosofia em Curitiba-PR e Teologia em Petrópolis-RJ. Doutorou-se em Teologia e Filosofia na Universidade de Munique-Alemanha, em 1970. Ingressou na Ordem dos Frades Menores, franciscanos, em 1959.

É doutor honoris causa em Política pela universidade de Turim (Itália) e em Teologia pela universidade de Lund (Suécia), tendo ainda sido agraciado com vários prêmios no Brasil e no exterior, por causa de sua luta em favor dos fracos, dos oprimidos e marginalizados e dos Direitos Humanos.

De 1970 a 1985, participou do conselho editorial da Editora Vozes. Neste período, fez parte da coordenação da publicação da coleção "Teologia e Libertação" e da edição das obras completas de C. G. Jung. Foi redator da Revista Eclesiástica Brasileira (1970-1984), da Revista de Cultura Vozes (1984-1992) e da Revista Internacional Concilium (1970-1995).

É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística. A maioria de sua obra está traduzida nos principais idiomas modernos.

terça-feira, 21 de abril de 2015

AS PEQUENAS PEÇAS DE AUSCHWITZ



Meu nome é Oskar Gröning, tenho 93 anos.

Perdi minha mãe muito cedo, com apenas 4 anos de idade.

Meu pai me criou sozinho.

Era um nacionalista fanático que não se conformava com a derrota da Alemanha na I Guerra Mundial. Dizia que o país fora traído pelos judeus e que eles eram os responsáveis por nossa ruína.

Meu pai, entrou num grupo paramilitar, o “Der Stahlhelm” que era de um anti-semitismo tão latente que seu lema era “E quando o sangue judeu correr pelas nossas facas, tudo ficará bem novamente”.

Desde que me conheço por gente aprendi a odiar os judeus.

Eu era fascinado por música. E por fardas também. Por isso, ainda muito jovem me aliste nas SS, a tropa de elite do Partido Nazista.

Tinha apenas 18 anos quando a Segunda Guerra Mundial começou e aos 21 cheguei em missão administrativa a Auschwitz, o maior dos campos de concentração, localizado no sul da Polônia ocupada pelo Terceiro Reich.

Trabalhei lá de 1942 até 1944.

Minha tarefa era recolher e enviar para Berlin o dinheiro dos prisioneiros. Mais tarde passei também a recolher as bagagens dos recém-chegados para que os seguintes não a vissem e não se apercebessem imediatamente do destino.

Sou, portanto, um dos que chamam de “executores” e graças ao negacionismo que a Alemanha desenvolveu, negando-se a reconhecer a culpa dos cúmplices, preferindo julgar como criminosos apenas os mandantes e dirigentes, nunca fui julgado por meus atos.

De fato, não fui responsável direto pela execução de ninguém. Mas tenho e assumo minha parcela de culpa.

Eu só percebi a real extensão da tragédia, numa ocasião em que me aproximei da área das câmaras de gás. Vi e ouvi coisas e gritos que mesmo hoje, 70 anos depois, ainda me perseguem à noite. Acordo muitas vezes com os gritos tão vivos que chego a pensar que as vítimas estão dentro do meu quarto.

Eu juro que acreditava em Hitler e em meu pai quando diziam que era dever da Alemanha destruir o judaísmo. Foi isso e acreditar que assistíamos a uma guerra limpa, de métodos avançados, que me manteve em pé, cumprindo minha missão.

Eu estava lá. Era uma pequena peça da engrenagem, um insignificante parafuso. Mas estava lá. Se se considerar isso culpa, sou culpado

Hoje, sinto uma dor que me queima a alma e gostaria muito de pedir perdão ao povo judeu, aos seus mortos, aos seus filhos. Acho que devo sim ser julgado e punido assim como todos que apenas cumpriam funções menores, mas estavam cientes do massacre.

Meu nome é Oskar Gröning e me chamam de “o contabilista de Auschwitz”.

Ao longo de décadas, Gröning respondeu apenas perante a sua consciência. Porém, ao contrário da maioria, nunca escondeu sua responsabilidade.

Depois de décadas sem que fosse abordado pela justiça, o julgamento tornou-se possível com a jurisprudência criada pela condenação, em 2011, a cinco anos de prisão, de John Demjanjuk, antigo guarda do campo de Sobibor. Foi a primeira vez que a justiça alemã condenou alguém por cumplicidade. Antes, só tinha havido condenações de dirigentes, em Nuremberg, e, depois, de comprovadamente envolvidos no extermínio.

Por motivos "legais e de prova", as acusações que o levam ao tribunal de Luneburgo, Sul de Hamburgo, dizem apenas respeito a dois meses do seu tempo de Auschwitz, na Polónia ocupada: de Maio a Julho de 1944, o período da Operação Hungria, quando chegaram "cerca de 425 mil pessoas", 300 mil das quais foram mortas nas câmaras de gás.

De certa forma, seu julgamento será também o julgamento da própria Alemanha e da postura de minimizar os crimes do nazismo, esquecendo as pequenas peças da monstruosa engrenagem responsável pelo massacre premeditado de milhões de criaturas.


Prof. Péricles


Fontes:
Jornal Hannoverische Zeitung
BBC News.
Die Welt
Huffington Post
Diário Bild